sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Outros votos pelo Sim

Do Zé Carneiro, um contributo que, nas suas próprias palavras, constitui um apoio ao “voto pelo Sim fundamentado de forma heterodoxa”.

O voto Não conciliável

1. Sinto a felicidade de ter nascido no seio de uma família católica, e de ter vivido a infância e os primeiros anos da adolescência em comunhão com a igreja paroquial a que pertencíamos (Santo Adrião, em Moçâmedes).

2. Se a Fé confrontada pela Razão entretanto esmoreceu, já os valores morais inculcados pela educação católica persistiram e, creio, hão-de guiar-me até ao fim da vida.

3. Este background determina, radicalmente, a minha posição sobre o aborto: sou contra, em todas e quaisquer circunstâncias. Inexoravelmente.

4. Mas é igualmente decisivo para o sentido do meu voto no próximo referendo: votarei Sim, ou seja, pela despenalização do abordo. E explico.

5. O princípio da inviolabilidade da vida humana é sagrado para os católicos. Mas a doutrina cristã não se esgota nos dez mandamentos. E mais, os valores que a integram não são codificáveis: procederam da palavra de Jesus Cristo e da sua existência profética (carismática, diria Weber).

6. De entre esses valores, salientam-se o da compaixão e o da humildade. Nasce do primeiro a solidariedade para com o sofrimento da mulher, ou adolescente, que tendo incorrido numa gravidez não desejada, se não sente capaz, ou capacitada, para a levar até ao fim, e aborta. Decorre do segundo o dever de aceitar pontos de vista diferentes sobre o significado do feto e do momento a partir do qual representa um ser humano.

7. Concluindo: não vejo, perante os elementos contraditórios do sistema de valores, ou da sua aplicação concreta, da nossa matriz civilizacional, como seja possível deduzir uma solução objectiva – isto é, independente das convicções puramente pessoais de cada um – para a questão do aborto. E sendo assim, quem poderá arrogar-se no direito de qualificar como criminosa a mulher que o cometa?

8. Há, no entanto, uma posição no debate deste problema que julgo susceptível de ser analisada, e refutada, em termos objectivos. Refiro-me à compaginação de algo que é irreconciliável: defender o Não e simultaneamente aceitar como boa a lei actual, que pune o aborto, mas excepciona três casos. E explico-me, novamente.

9. Defendendo-se o princípio da inviolabilidade da vida humana desde a sua formação inicial, não se alcança por que deverá merecer menor protecção o feto que nasceu de uma violação relativamente àquele que foi gerado numa relação ocasional, ou no seio da família tradicional. E, identicamente, como aceitar que o feto portador de deficiência não tenha igual direito à vida? Para viabilizar este último argumento teríamos de admitir o que o amor dos pais pelo filho deficiente, e o dever de cuidarem dele, não é igual ao que os move na relação com os filhos saudáveis.

10. Esta incoerência – votar Não e defender a Lei actual com as suas três excepções – explica a fragilidade os defensores do Não em todos os debates públicos a que temos assistido. Por vezes, confrangedora.

Zé Carneiro