Referendo
Agora que tudo está acabado e, felizmente, ganhou o sim, é altura de reflectir sobre o uso do referendo.
1. Nunca, em minha opinião, se deveria ter levado a referendo a questão da descriminalização do aborto (embora, depois do primeiro referendo, fosse difícil outra solução). Esta é exactamente o tipo de questão que não deve ser referendada, pois não é, ao contrário do que se disse, uma questão de consciência.
2. Questão de consciência será agora, depois da descriminalização, a decisão da mulher individual colocada perante a hipótese de abortar. No referendo, porém, o que estava em causa era decidir sobre matéria de direito penal, decisão em cuja discussão as paixões e a demagogia tendem a sobrepor-se à necessária racionalidade. Foi como se tivéssemos levado a referendo a pena de morte...
3. Uma das virtudes da democracia representativa, apesar da deterioração da actividade política induzida pela mediatização da vida pública, sobretudo em sede parlamentar, está na criação de um espaço em que é possível a tomada de decisão em ambiente protegido da demagogia. Por isso, esse espaço deve ser preservado e nele devem estar sedeadas as decisões sobre matérias em que a racionalidade seja mais ameaçada pelas paixões e pela demagogia. Como o são as decisões sobre matérias penais.
4. O campo do referendo deverá ser mais o do conflito de interesses instrumentais do que o do conflito de valores. E o modo da sua aplicação, depois de assim especificado o seu campo, deverá ter por base objectivos de mobilização definidos de modo pragmático: por exemplo, fazendo coincidir as datas de referendo com as de eleições do mesmo âmbito territorial.
5. Para além do que importa relançar a discussão sobre o requisito do nível de participação. Estando devidamente acautelado o controlo sobre a proposição do referendo, não percebo a pertinência daquele requisito. Parece-me mesmo um dos factores de desmobilização mais poderosos que se poderia ter inventado. Ainda por cima apelando à irresponsabilidade.