quinta-feira, 12 de abril de 2007

Discordâncias, repulsas e alergias

1. Miguel Vale de Almeida critica a posição que aqui tomei em “Questões políticas passageiras e questões de Estado” (10/04/2007): “Rui Pena Pires até pode ter alguma razão na questão do ónus. Mas esquece duas ou três coisas bem mais importantes: 1) um papel fulcral da comunicação social em democracia é vigiar o poder; 2) não estamos a falar de um cidadão comum, mas do primeiro-ministro.
Por uma vez, discordo bastante do Miguel. E discordo porque entendo que do reconhecimento do papel da imprensa na vigilância do poder (com o qual concordo) não resulta a legitimidade para desrespeitar as normas de protecção dos direitos dos cidadãos titulares de cargos políticos. Em consequência, não concordo, também, com a segunda ressalva do Miguel: “não estamos a falar de um cidadão comum, mas do primeiro-ministro”. Um primeiro-ministro, como um ministro ou um deputado, mas também um jornalista, mantém intactos todos os seus direitos como cidadão livre. Terá deveres acrescidos, mas não à custa da redução dos seus direitos, em particular o direito à presunção de inocência e o direito ao bom-nome.
Discordo do Miguel, em segundo lugar, porque “vigilância do poder” não é o mesmo que “julgamento de carácter”. Vigilância do poder é vigilância dos actos POLÍTICOS hoje praticados por agentes do poder, não a devassa da sua vida passada para nela encontrar qualquer pecadilho mais ou menos remoto. Para ser franco, interessa-me muito pouco o que fez há 15, 20 ou 30 anos um qualquer agente político de hoje, como me interessa ainda menos valorizar a pureza angelical do trajecto como critério para a escolha e avaliação dos titulares de cargos políticos de hoje (e a continuar por este caminho, pouca gente com percursos de vida interessante haverá amanhã com disponibilidade para ocupar esses mesmos cargos). Além do que, confundir “vigilância do poder” com “julgamentos de carácter” tem a desvantagem de deixar sem vigilância a actuação política efectiva dos agentes políticos.

2. Discordando do Miguel, compreendo o bom fundamento das suas objecções. Já em relação às declarações, hoje, ao Público, de António Barreto e de Vasco Pulido Valente, a minha posição não é só de discórdia, é também de repulsa. É espantoso, e inaceitável, que António Barreto entenda ser ilegítima a carreira académica de titulares de cargos políticos ou que desqualifique um percurso académico por este ser feito por etapas e em diferentes instituições. Como é lamentável o estilo cínico “não vou por aí, mas…” concretizado nas frases “era tão melhor julgar os políticos por razões políticas e não por motivos pessoais ou de carácter! … [Mas] gostemos ou não, faz parte das regras do jogo”. Como é espantoso, e inaceitável, que Vasco Pulido Valente ignore que a admissão à universidade de alunos de outras instituições e graus de ensino passe pela definição de planos de estudos específicos e transforme essa ignorância em insinuação ao falar de “fabricação” de um plano de estudos. Noutro contexto, em A Quadratura do Círculo, na SIC-Notícias, é lamentável que o jurista Lobo Xavier tenha torcido como o fez a questão da inversão do ónus da prova, afirmando que exigir que quem reclama ter uma credencial escolar demonstre ter de facto essa credencial é inversão legítima do ónus da prova. Pois, como todos estão fartos de o perceber, o que está a ser abusivamente insinuado não é a inexistência da certificação mas a licitude dos métodos dessa certificação — caso em que é totalmente ilegítima a inversão do ónus da prova.

3. E também lá estava o André Freire. Começa a ser alergia (e eu sei que a afirmação é preconceituosa), mas foi irritante ouvi-lo estranhar, com o ar mais sério deste mundo, a possibilidade de se realizar um processo de equivalências sem a entrega prévia de um certificado com as disciplinas feitas noutra instituição. É legal e é possível, faz-se todos os dias e é aconselhável que se faça, instruir um processo com base em declarações sob compromisso de honra, condicionando a efectividade das conclusões do processo à futura comprovação dessas declarações. Faz-se em processos de transferências, entre instituições como entre planos de estudos, nas equivalências Erasmus, em candidaturas a ciclos de estudos subsequentes à licenciatura ou, como previsto nos respectivos regulamentos, nos concursos de bolsas FCT. Entre outras situações. Estar calado quando não se sabe de que se fala não é defeito…