“A quantidade é inimiga da qualidade”
1. Domingo, Antena 2, em directo do CCB (ouvida no rádio do carro). Questionada no final do seu espectáculo sobre o que achava dos Dias da Música, Olga Prats nada mais teve para dizer senão que não gostava de formato tão compacto, com pessoas a correr de um espectáculo para outro. E rematou: para mim “a quantidade é inimiga da qualidade”. Nos dias de hoje não conheço frases muito mais reaccionárias. E então usada no contexto dos Dias da Música…
Felizmente que Haydn não pôde escutar a proclamação das olgas deste mundo e, “displicentemente”, compôs 106 sinfonias, 68 quartetos de cordas, 45 trios com piano, 62 sonatas para piano e um sem número mais de obras de câmara, vocais, sacras e profanas (sem contar com mais de 400 arranjos para canções escocesas). Mozart e Schubert infelizmente morreram cedo, mas a sua “displicência” não era menor: o primeiro compôs centenas de obras de todo o tipo, entre as quais 41 sinfonias e 23 quartetos de cordas; Schubert é sobretudo conhecido e apreciado pelas mais de 700 canções que compôs em 18 anos.
Facilitistas, no fundo.
2. A frase é, sobretudo, apreciada e usada pelos defensores dos fechamentos corporativos. Não há corporação que não esteja disposta a subscrevê-la na primeira oportunidade. “A quantidade é inimiga da qualidade”: por isso, diz-se, por exemplo, que há em Portugal licenciados a mais ou até, já o ouvi pessoalmente, doutorados a mais. Dito sobretudo por quem já é licenciado ou doutorado. Nos Dias da Música haverá gente a mais, pois esse é o corolário lógico de haver espectáculos a mais.
Mais do que simples lugar-comum reaccionário, a frase remete para todo um programa ideológico elitista, nos mais variados domínios (mas em especial na educação e nas artes).
3. O estranho é ver, com demasiada frequência, o programa usado à esquerda. Em parte, por razões de “oportunidade” política. Quando a sua influência recua, há quem vá a todas, isto é, quem cavalgue todos os protestos para conter a tendência para a erosão. Ainda acabaremos, assim, por ouvir trautear um qualquer refrão do tipo “não há corporação que não faça o encanto do PC”.
Para legitimar esta queda no corporativismo, PC e companheiros de luta constroem das mais falaciosas linhas de argumentação que conheço. Uma das minhas preferidas é que associa quantidade a mercado, esquecendo: (1) que o fechamento ao mercado, e portanto à concorrência, não é conhecido por incentivar necessariamente a qualidade; (2) que o mercado tanto massifica como elitiza, pois no concreto não há mercado mas mercados, por exemplo de produtos e serviços de massas ou de produtos e serviços de luxo. No mercado, o que está em jogo não é a escolha entre quantidade e qualidade mas o desigual acesso à qualidade (e, já agora, também à quantidade). Desigualdade que, curiosamente, acaba também por acontecer quando por fechamento corporativo se desiste de promover a massificação com qualidade (a não confundir com excelência) e se troca uma pela outra.
Ainda que a pretexto da resistência ao mercado.