Fundações, intenções, temores… e contrapontos
Voltando, como anunciado, ao tema do estatuto fundacional das universidades.
Previsto no novo regime jurídico das instituições do ensino superior (RJIES), este estatuto permite ganhos de autonomia das universidades e a introdução de regras de direito privado na sua gestão financeira e de pessoal. Sendo múltiplas as críticas a esta solução formuladas pelos opositores ao RJIES, duas há que são mais sistemáticas e mais irritantes.
1. A primeira dessas críticas passa por recusar discutir o que está expresso na lei e nas declarações públicas dos seus promotores e centrar a intervenção no que estaria subjacente (a “lógica subjacente”), mas não expresso, à lei e àquelas declarações (tipo, “isso deve ser uma manobra de desinvestimento público do estado”). A estratégia pode ser eficaz no plano retórico mas impossibilita qualquer confronto baseado em critérios de objectividade, pois remete para o plano do inverificável. Lembra-me sempre, por isso, a estratégia irónica de Cipolla na sua teoria geral sobre a estupidez, totalmente assente no enunciado da primeira lei fundamental da estupidez humana: “Cada um de nós subestima sempre e inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos em circulação.” Claro que com esta lei, empiricamente inverificável, Cipolla consegue a seguir formular um conjunto de outras leis também empiricamente inverificáveis mas logicamente consistentes entre si, assim demonstrando a independência do discurso apenas lógico em relação à prova empírica.
2. A segunda crítica é dirigida contra as lacunas e ambiguidades da lei que justificariam um temor insuperável das consequências imprevisíveis da opção fundacional: é preciso, diz-se, clarificar melhor, antecipadamente, os dilemas envolvidos nessa opção, aperfeiçoando a lei, eliminando toda e qualquer abertura dela constante, atribuída, sempre, a defeito de especificação jurídica. Este temor da incerteza da mudança, que parece esquecer que não há mudança sem incerteza, era já objecto de um discurso famoso de Jean Monnet: “Nada há de mais estéril que antecipar, no contexto do presente, as questões que se colocarão apenas no futuro, quando o objecto da nossa acção é, precisamente, transformar o contexto actual. Se, para agir, esperarmos que todas as questões tenham já resposta, nunca agiremos, nunca conseguiremos ter as certezas pretendidas e seremos conduzidos pelo curso dos acontecimentos que renunciamos a orientar” [Jean Monnet, 30 de Abril de 1952].
3. A citação de Monnet foi retirada de um livro publicado, já neste ano de 2008, em França, por André Versaille Éditeur: Les 100 Discours Qui Ont Marqué le XXe Siècle, organizado apresentado e anotado por Hervé Broquet, Catherine Lanneau e Simon Petermann. De leitura recomendada, sobretudo para se perceber quão longe andam de muitos dos discursos aí recenseados aqueles proferidos pelos que se centram na enumeração das incertezas que recomendariam a inacção.