sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A grande cruzada

No novo blogue da Sedes, Luís Campos e Cunha retoma a sua Grande Cruzada contra os grandes projectos de investimento público em texto intitulado “Grandes males, Grandes projectos”. Citemos: “Pelo gráfico acima vemos mais uma razão porque a Irlanda cresceu: não se meteu em grandes projectos públicos. E vemos porque é que Portugal cresceu pouco, fez exactamente o contrário.” Deixemos de lado o pormenor de saber se do gráfico usado se pode ou não retirar tal conclusão (em minha opinião não pode) e centremo-nos na crítica desta.

1. Primeiro, os factos. A Irlanda não se meteu em grandes projectos públicos na área das infra-estruturas de transportes mas meteu-se o suficiente para se poder integrar na rede britânica de transportes… e para a poder usar (e a Espanha aqui tão perto…). Por outro lado, para um maior equilíbrio entre investimento público e investimento privado na Irlanda foi fundamental não tanto a redução do primeiro como o aumento do segundo por captação de investimento estrangeiro (ver figura).

Investimento directo estrangeiro (IDE): comparação Portugal/Irlanda
[clique para ver ampliada em janela própria]
Fonte: UNCTAD, World Investment Report 2008, em especial Anexo B, quadros B.2 e B.3
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2. Depois, os argumentos, que convém não confundir. Por exemplo, não é difícil aceitar que em Portugal terá havido concentração excessiva do investimento público em infra-estruturas em detrimento do investimento público noutros sectores, mas reconhecer isso não é o mesmo que desconsiderar, em absoluto, todo o investimento em “grandes projectos”. Ou seja, o que é necessário é não a recusa por princípio dos “grandes projectos”, em bloco, mas um eventual melhor equilíbrio entre diferentes tipos de projectos: por exemplo, projectos em infra-estruturas e (e não ou) projectos em educação e ciência, uns poucos grandes projectos e (e não ou) múltiplos projectos de pequeno e médio porte, mais distribuídos no espaço e mais alongados no tempo.

3. Em seguida, as consequências de política. Haverá investimentos públicos em infra-estruturas de grande porte que conviria reavaliar para abrir espaço para outras realizações? Há, sempre. Por exemplo, talvez todo o novo investimento em auto-estradas pudesse ser suspenso (inclusive na auto-estrada para Bragança) e substituído por investimento na ferrovia. Como talvez pudesse ser repensado o investimento em novas barragens enquanto não se retomar e concluir o investimento já feito em Foz Côa. Talvez. Mas já não me parece tão facilmente justificável o abandono dos projectos do TGV Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid, sobretudo tendo em consideração não apenas a sua rentabilidade directa como as múltiplas externalidades positivas (ao contrário da rodovia) já comprovadas em projectos semelhantes noutros países europeus. Rentabilidade e externalidades difíceis de detectar em estudos prévios por o TGV constituir um caso típico de inovação sociotécnica tão radical que torna quase impossível a antecipação das suas potencialidades futuras por actores de hoje com critérios do presente.

4. Por fim, a conjuntura. É verdade que na actual conjuntura convirá acautelar a disponibilidade de recursos financeiros para apoio ao investimento privado, sendo necessária, portanto, mais selectividade do que nunca na concretização dos grandes (e pequenos) projectos públicos. Mas não só, e uma vez mais, selectividade não é o mesmo que nada como também é verdade que hoje será provavelmente mais necessário do que nunca suprir os prováveis défices de investimento privado com um aumento relativo, sublinho, relativo, do investimento público. E, sim, eu sei que há assim riscos de derrapagem da dívida pública… Mas também há riscos socioeconómico graves com a retracção brusca do investimento, pelo que o que está em causa não é, como sempre, a escolha de um caminho sem riscos mas a escolha do caminho com menos riscos para mais pessoas.