quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Vias novas sem velhos vícios - "rupturas das diferentes esquerdas consigo mesmas"

O Rui salienta e bem, aqui no Canhoto, que o debate sobre as novas vias para a esquerda não deve deixar-se contaminar pelos velhos vícios da esquerda. Entre estes contam-se os que se desenvolvem sempre que a cultura da argumentação claudica perante os tiques arrogantes e autoritários que a transição do séc. XIX para o séc. XX deixou na esquerda e ressurgem, recorrentemente, fazendo caír nódoas nos melhores panos.

O debate necessário deve centrar-se, acho eu, na busca de novas respostas para os velhos problemas e para as suas novas configurações e não no fechamento dogmático nas posições de partida. Também por isso, mas não só, me não reconheço na crítica de Alegre à "terceira via" nem nos que que diabolizam a expressão e condenam à fogueira do neoliberalismo os seus contributos. Há, aliás, contradição entre a esperança em torno de Obama, que não é socialista e parte do aprofundameno do melhor que a terceira via trouxe à esquerda e a recusa dos contributos desta, talvez pós-social-democratas mas não neoliberais, excepto naquilo em que se limitou a ser continuista com a conjuntura histórica em que chegou ao poder.
A Terceira Via tem, contudo, o pecado original de ter procurado não fazer rupturas. Se não pode ser confundida com a decisão táctica e profundamente errada de Blair em relação à guerra o Iraque, pode exigir-se-lhe responsabilidades no modelo de regulação da actividade financeira de Greenspan (não rompendo com Reagan), na camisa de forças em que permaneceram os sindicatos britânicos (não rompendo com Tatcher) ou na política monetária do BCE que sempre sacrificou o crescimento económico em nome da obsessão com a inflação (não rompendo com Kohl).
A Terceira Via deu, no entanto, a administração Clinton-Gore, o condomínio Blair-Brown, a presidência de Fernando Henrique Cardoso, os governos de António Guterres e Schroeder-Fischer, embora também tenha dado o afundamento da esquerda democrática italiana e a erosão das social-democracias escandinavas. Hoje, ainda, ambos os governos socialistas ibéricos dela emanam.
Para as novas vias da esquerda, tal via deve ir ao julgamento da razão crítica e não ser alvo de condenação sumária ou banimento. Mas também não pode ser incensada, porque se historicamente tivesse sido eficaz à escala mundial não teriamos chegado à crise em que estamos.

Como se vê pelo texto do Filipe Nunes no País Relativo, a crítica de Manuel Alegre ao capitalismo pode até resultar da leitura de Giddens malgré lui, ou, pelo menos que que Alegre e Giddens tenham, por sua vez, lido os mesmo autores. Porque, sinceramente, é tão original no plano da teoria política o facto de Giddens escrever uma frase em 1998 quanto o é, no plano político, que um militante socialista iclua a ideia nela encerrada numa moção ao Congresso do PS, no ano seguinte. Convém ter presente que , se a autoria intelectual tem a ver com a originalidade da ideia, a autoria política tem a ver com a persistência com que ela é desenvolvida e os resultados que com esse labor se produzem.

Outra questão, completamente diferente e da qual discordo, resultaria de achar aceitável a atitude que ouvi a diversos amigos - o ataque ad hominem que, com vários matizes, é feito a Manuel Alegre, do tipo "compara-se a De Gaulle" ou "pensa que antes dele ninguém tinha dito as mesmas coisas". Penso que, no repensar da esquerda, pouca importa a simpatia ou antipatia que se tenha pelas personalidades de Manuel Alegre, ou de Mário Soares, ou de José Sócrates, ou de Francisco Louçã, ou de... Apenas interessa para o debate a substância do que dizem. De outra forma todos encontraremos nas pessoas de todos motivos para os desvalorizar, ridicularizar até e deixaremos que, mais uma vez, o sectarismo impeça a esquerda de ver que a mudança dos tempos a desafia. Ao longo do século XX sempre que tal erro dominou, a esquerda ficou paralisada ou reagiu tarde demais e com pouca força a grandes desastres.


Por isto tudo dou pouca importância a que Manuel Alegre se centre nas suas moções aos Congressos do PS e não noutros textos ou a que o próprio, se estivesse sózinho no debate, atirasse a terceira via pela borda fora. Valorizo mais o seu apelo à "ruptura das diferentes esquerdas consigo mesmas" que só pode incluí-lo também a ele. Nessas rupturas consiste, o unico ponto em que o Rui está a devalorizar a dimensão do trabalho que nos espera, se o quisermos abraçar. Se é certo que a história da social democracia é um devir de mudança, não é menos certo que as circunstâncias históricas a forçaram a fazer escolhas difíceis em alguns momentos, que lhe mudaram o rumo político, quando erradas a enfraqueceram e quando adequadas lhe permitiram ser de novo portadora de esperança: em 1914, quando escolheu pelas pátrias contra o internacionalismo solidário; em 1917, quando se cindiu em torno da importância dos processos democráticos; em 1929, quando foi necessário responder à maior crise económica do capitalismo de sempre; em 1935, quando teve que avaliar o impacto do nazismo e da nova onda ditatorial sobre a Europa; em 1945, quando teve que escolher entre vias alternativas de reconstruir a Europa e o Mundo, sobre as ruínas da II Guerra Mundial; em 1962, quando teve que responder à escalada da Guerra Fria; em 1989, quando teve que integrar a Queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética e, logo a seguir, que encontrar alternativa ao neoliberalismo de Reagan e Tatcher.

O maior problema, parece-me é que a esquerda pós-muro de Berlim e pós-Reagan ainda não encontrou o novo caminho, continua a remendar-se pelos velhos. Tento estar entre os que percebem que "tem uma pedra no meio do caminho" e não entre os que acham que ele está encontrado e é só fazer para cada temporada d poder o casting de actores políticos adequado. Nas eleições americanas, esta última foi a visão que se revelou fatal para Hillary Clinton, mulher provavelmente, no fundo do seu pensamento político, bastante mais social-democrata que Obama. Mas, na percepção de que os tempos são de mudança, Obama foi muito mais rápido talvez ainda acabe por ser Presidente por causa de ter tomado posições que teoricamente o impediriam de o ser. O que quer dizer, ao contrário da frase de De Gaulle citada por Alegre, que em política a chave do sucesso também pode estar em saber ter razão antes do tempo.