Prolongar inutilmente sofrimento inútil
1. Relembro, de novo, uma passagem do notável discurso com que Zapatero apresentou aos deputados a proposta de alteração do Código Civil para remover os obstáculos ao casamento de homossexuais: “como outras reformas que a precederam, esta lei não produzirá mal algum, […] a sua única consequência será livrar seres humanos de sofrimento inútil. E uma sociedade que livra os seus membros de sofrimento inútil é uma sociedade melhor”.
2. Note-se que o que está em causa não é a criação de um novo direito, especificamente para homossexuais, mas a eliminação de uma discriminação: a restrição no acesso ao direito ao casamento em função da orientação sexual. O mesmo que está também em causa na questão da adopção: não se trata de saber se os casais homossexuais têm direito a adoptar (uma formulação absurda) mas se faz sentido impedir um casal de adoptar apenas porque esse casal é composto por duas pessoas do mesmo sexo. Em minha opinião não faz, como não faz sentido a restrição no acesso ao direito ao casamento em função da orientação sexual.
3. Jorge Miranda tentou ontem no Público, uma vez mais, demonstrar a inconstitucionalidade da eliminação daquela restrição, argumentando que há na Constituição vários artigos que ligam o casamento às relações pais-filhos. Sendo verdadeira a existência dessa ligação, ela não permite suportar a conclusão de Jorge Miranda. Mais, o problema hoje não está na possibilidade de o casamento poder desligar-se da reprodução mas, como escrevi há quase dois anos, na insistência que alguns fazem na ideia de que é possível subsumir a regulação da parentalidade na regulação da conjugalidade. Citando o que então escrevi: «com o aumento das taxas de divórcio, com o aumento dos nascimentos fora do casamento, com o aumento das famílias recompostas, só será possível regular com eficácia direitos e deveres de pais e filhos se essas normas tiverem autonomia em relação às do casamento. A proposta não é minha […]. Encontra-se, por exemplo, no pequeno livro de Giddens sobre a “terceira via” […]: “Marriage and parenthood have always been thought of as tied together, but in the detraditionalized family, where having a child is an altogether different decision from in the past, the two are becoming disentangled. The proportion of children born outside marriage probably won’t decline, and life-long sexual partnerships will almost certainly become increasingly uncommon. Contractual commitment to a child could thus be separated from marriage, and made by each parent as a binding matter of law, with unmarried and marital fathers having the same rights and the same obligations.”»
4. Desta vez, a posição do PS na Assembleia da República não só não contribuirá para modernizar o nosso quadro legal como permitirá que se prolongue inutilmente, por mais algum tempo, o sofrimento inútil de muitos portugueses. É pena.