quarta-feira, 12 de novembro de 2008

À sombra da palavra

À boleia da última manifestação, Manuel Alegre usou da palavra para apoiar as contestações à política educativa. Fê-lo em termos contraditórios, endossando as mais reaccionárias das críticas em presença e apelando ao conformismo bem legitimado.

1. A contradição é visível na proclamação de alternativas que correspondem a medidas em curso! Por exemplo, esperava-se que da afirmação, no Ops!, “sou a favor da gestão democrática das escolas, com participação dos professores, dos estudantes, dos pais, das autarquias”, resultasse um claro apoio à reforma da gestão das escolas que tanto tem sido contestada. Mas nada. Ou que, quando se afirma que “devem ser criadas condições universais de acesso à escolaridade obrigatória, nomeadamente através de transporte público gratuito e fornecimento de alimentação”, se concluísse apoiando a maior subida do apoio social escolar que foi feita nas últimas décadas. Mas, uma vez mais, nada. E estes silêncios não são inocentes, pois são eles que permitem manter o debate no campo da retórica eliminando o desmentido da chata da realidade.

2. A deriva reaccionária passa pelo endosso, sem reservas, da campanha ideológica do facilitismo lançada por Nuno Crato e militantemente divulgada por José Manuel Fernandes, campanha que ressurge sempre que o sucesso aumenta, ignorando, em contrapartida, o genocídio factual originado pelo “dificultismo”. Sobre o assunto, limito-me a citar o que já escrevi no Canhoto: a “acusação de facilitismo é, em rigor, a arma retórica usada por aqueles que reagem à generalização do sucesso como excesso de sucesso [por orientação] ideológica radicalmente conservadora e elitista.”

3. O conformismo bem legitimado exprime-se na proposta de substituição de medidas realistas com possibilidade de sucesso no curto prazo por medidas mais “de fundo” de difícil concretização e com efeitos mais longínquos. É em parte o que se passa com a prioridade atribuída aos conteúdos sobre tudo o mais: “tudo se discute menos o essencial: os programas e os conteúdos do ensino” (e, em rigor, assim se reforça, de facto, o aconchego junto de Crato e Fernandes). Mas é sobretudo visível no aparente radicalismo da proclamação de que o “abandono escolar precoce deve ser combatido nas suas causas sociais, culturais e materiais”. E sobre as causas escolares do abandono nada, como se a escola fosse neste terreno irrelevante! Assim se fazendo, por paradoxal que possa parecer, o enterro da escola pública, pois esta deve a sua principal razão de existência ao contributo que pode e deve dar para corrigir as heranças sociais negativas e aumentar, o mais que puder, as oportunidades de mobilidade social, apesar dessas heranças. Assim se sacrifica o presente e o futuro das gerações actuais, em prol de uma promessa de futuro radioso para as próximas gerações. Para quem gosta de reclamar, a todo o momento, uma irritante superioridade moral entre a esquerda, não está mal tamanha manifestação de insensibilidade social.