Um olhar umbiguista
É o mínimo que se pode dizer de três textos no Ladrões de Bicicletas sobre “os pontos fracos da governação do PS sob Sócrates,” de André Freire, em que o autor identifica três calcanhares de Aquiles da governação, sendo um deles (e mais uns pozinhos de outro) a política no sector de actividade do próprio André: o ensino superior.
1. Já agora, conviria que o André explicasse, sem remeter simplesmente para afirmações de outros não identificados, em que se baseia a tese peregrina de que a transformação de instituições universitárias em fundações públicas com regime de direito privado constitui “a porta aberta à privatização do ensino superior e à sua completa mercantilização”. As universidades que passarem ao regime fundacional vão ter a possibilidade de adoptar métodos de gestão, nomeadamente no plano financeiro e do pessoal (neste último caso com salvaguarda dos vínculos públicos preexistentes), baseados no direito privado. Porém, não poderão transformar os alunos em clientes, continuando a desempenhar uma missão pública definida pela manutenção dos critérios de recrutamento, que continuará a ser o regime geral de acesso comum a todas as instituições públicas (artigo 135.º da Lei 62/2007), bem como das taxas a cobrar pelo serviço prestado, que continuarão a ser as propinas públicas definidas por lei para todas as entidades públicas de ensino superior (n.º 4 do artigo 136.º). Mercadorização, assim? Só com má fé.
2. Convinha ainda evitar as insinuações malévolas, facilmente desmentidas pelos factos. Segundo o André, e a propósito de uma referência a declarações de António Nóvoa proferidas num cenário digno da mais caricatural representação da velha universidade, “para 2009 o governo vai dar, apesar de tudo, mais dinheiro a algumas universidades: as que aceitaram transformar-se em ‘Fundações Públicas de Direito Privado’, como pretendia a tutela”. As instituições universitárias que poderão, a curto prazo, passar ao regime fundacional, por terem para isso aberto negociações com o Governo, são o ISCTE, a Universidade de Aveiro e a Universidade do Porto. No OE de 2009, as transferências por aluno para as universidades portuguesas serão, em média, de 4.274 euros. Para o ISCTE, o valor definido é de 2.937 euros, o mais baixo de todos; para Aveiro, é de 3.833, bem abaixo também da média. Apenas a transferência para a Universidade do Porto, a mais eclética do país, é claramente acima da média: 4.684 euros. O desprezo pelos factos no calor da controvérsia tem limites, mesmo nos textos em que se não faz “uma análise exaustiva e abordando os vários aspectos fundamentais de um determinado problema” (estendendo uma desculpa já dada para desprezo semelhante em situação de entrevista…).
3. André Freire acusa também o Governo de “falta de diálogo social, sobretudo na área da educação”. O problema do André é que a este respeito faz apenas discurso ideológico e do mais enviesado. Eu também acho que ganharíamos, e muito, em ter um sistema de diálogo e de concertação social à nórdica, só que este é muito difícil de colocar em prática quando um dos parceiros tem uma orientação para o diálogo próximo de zero (a CGTP) e, sendo o de mais peso no mundo sindical, induz neste uma lógica de competição confrontacional que arrasta os outros sindicatos para as trincheiras da resistência à negociação (embora um pouco mais de coragem pudesse ajudar, e muito, a resistir a este efeito de arrastamento).
4. A ideologia está precisamente no olhar enviesado do André sobre esta questão. Não vale a pena fazer simplesmente declarações abstractas sobre a bondade dos sindicatos em abstracto. É necessário descer à terra e analisar o papel dos sindicatos que temos nos conflitos que temos. E se alguém me conseguir provar que a CGTP e boa parte dos sindicatos nela filiados se orientam pelos valores da negociação e pela defesa de um regime de concertação, apesar de todas, repito, todas as provas que diariamente o desmentem, então eu poderei começar a procurar a explicação para a dita falta de diálogo social no lado do Governo.