Sabe mesmo no que votou?!
O projecto de lei do Bloco de Esquerda votado na Assembleia de República, e rejeitado apenas pelo PS, merece ser lido.
1. As surpresas começam logo na “exposição de motivos”. As escorregadelas metafísicas pontuais, como a referência à “natureza intrínseca da educação” ou, já no corpo do articulado, à definição da escola como “uma unidade orgânica que interage com a realidade envolvente”, são o menos. Mas criticar o novo estatuto da carreira docente por ser um “sistema hierárquico artificial” é estarrecedor, pelo menos num partido que se diz de esquerda. Que eu saiba, só a direita mais conservadora defende a existência de hierarquias naturais, fundamentais para a legitimação de privilégios herdados por essa mesma direita acarinhados. À esquerda, nunca é de mais repetir que todas as hierarquias humanas são socialmente construídas, isto é, são artificiais, não dadas por Deus ou pela Natureza (com maiúscula).
2. E não foi descuido de redacção, pois no mesmo parágrafo se dá como exemplo dos efeitos perversos das ditas hierarquias artificiais “o caso de alunos orientados em estágios pedagógicos que procedem à avaliação daqueles que foram seus orientadores, formadores e avaliadores”. Releia-se, para se ter a certeza de que não houve engano. O Bloco defende a hierarquia (natural) da idade, denunciando como inaceitável a possibilidade de o antigo aluno poder vir a ultrapassar o mestre!
3. A concluir a dita “exposição de motivos”, apresenta-se o modelo de avaliação dos docentes proposto pelo Bloco. Trata-se, lê-se, de uma avaliação do docente assente na avaliação da escola e do colectivo docente. Reproduzindo para não se pensar que tresli: “A proposta de avaliação de desempenho docente assenta num modelo integrado de avaliação das escolas, concedendo prioridade ao trabalho cooperativo e à responsabilidade colectiva pelo efectivo sucesso escolar dos alunos…” Sobre a responsabilidade docente individual, nada.
4. Quanto ao projecto de lei propriamente dito, todo ele é compatível com esta orientação no sentido da diluição da responsabilidade individual. Assim, para organizar o processo de avaliação, são propostas comissões de perfil mais parlamentar do que executivo. Exemplo: “O processo de avaliação interna das escolas é acompanhado e monitorizado por uma equipa de avaliação com representantes de toda a comunidade escolar, nomeadamente, representantes dos seus órgãos colegiais eleitos, representantes dos professores, do pessoal não docente, pais e alunos ou ainda representantes sindicais.” Como forma de evitar as tão contestadas horas intermináveis de reunião apontadas como um dos problemas iniciais da avaliação era impossível inventar melhor.
5. Como era impossível inventar melhor mecanismo de eliminação dos efeitos diferenciadores da avaliação do que garantir ao avaliado a possibilidade de escolha de parte da equipa de avaliação, ou mesmo, no caso da chamada “avaliação extraordinária do desempenho”, dos critérios dessa avaliação. Citando: “O docente avaliando […] tem direito à determinação de uma parte do júri, e é co-decisor do período e modalidades de prestação das provas, em termos a regulamentar.”
6. Por fim, o toque pós-moderno e, para isso, nada melhor do que o centramento no texto em detrimento do acto. Em todo o projecto, a “observação de aulas” é sistematicamente apresentada como uma possibilidade entre outras, dependente do acordo do avaliado, nunca como obrigatória. Em alternativa, são valorizados os relatórios sobre a actividade docente e, em especial, o relatório de auto-avaliação. É como se num exame de condução a avaliação das competências para conduzir pudesse dispensar a avaliação dessas competências na prática da condução, sendo substituída por um discurso do examinando sobre essas mesmas competências.
7. A todos os que votaram a proposta do Bloco. Sabe mesmo, mas mesmo, no que votou?