Dos maus usos da comparação (entre outras coisas)
Em resposta a um texto meu no Canhoto, André Freire resume os argumentos de um seu artigo no Público que pensou estar na origem dos meus comentários críticos. Desconhecia o dito artigo mas ainda bem que dele assim tomei conhecimento.
1. Segundo André Freire, e “de acordo com as percepções dos eleitores de 19 países da UE entrevistados no European Election Study 2004, o PS é um dos partidos socialistas menos ancorados à esquerda da sua família política (isto é, os socialistas e social-democratas agrupados no PSE)”. Acrescenta ainda: “Não é a minha opinião, são dados recolhidos através de inquéritos por questionário junto de amostras representativas da população com 18 e mais anos em cada país.” É falso, é mesmo a opinião de André Freire.
2. Os inquiridos nos estudos referidos por André Freire não comparam partidos da mesma família política em diferentes países: não comparam, por exemplo, o PS com o Partido Socialista Francês. Avaliam, isso sim, a posição dos diferentes partidos do seu país numa escala esquerda-direita, através de diversas questões. Ora, como se sabe, a avaliação que em cada país é feita depende, em muito, da distribuição e peso das diferentes famílias políticas, nesse país. Por exemplo, num país em que as esquerdas marxistas sejam praticamente inexistentes mas em que a democracia-cristã seja forte e tenha grande implantação popular, inclusive em termos sindicais, a social-democracia tenderá a ser avaliada como mais à esquerda do que num país com um sistema partidário que seja o exacto simétrico deste — mesmo que as políticas prosseguidas sejam, rigorosamente, as mesmas. Ou seja, o contexto em que se fazem as avaliações conta, e muito. Por isso, a comparação entre avaliações de inquiridos em diferentes países é obra não dos inquiridos mas de quem usa os dados daquelas avaliações nacionais. Dito de outro modo, não são as percepções dos inquiridos que colocam o PS mais à direita do que outros partidos socialistas e social-democratas europeus mas os usos que André Freire faz dos dados sobre essas percepções.
3. Em segundo lugar, diz André Freire, o facto de PSD e CDS terem votado favoravelmente vários diplomas do actual Governo indicia uma convergência doutrinária entre estes e o PS. O raciocínio é, no mínimo, um pouco elementar. Por um lado, porque o sentido das votações dos partidos com possibilidade de participação na governação tende a ser diferente do dos partidos que se auto-excluem dessa mesma governação. Por outro, porque a ser assim Alegre seria suspeito de desvio direitista por ter votado propostas do CDS que tiveram a oposição do PS, para utilizar um exemplo nacional, ou o Partido Social Democrata Sueco estaria a por em causa a sua história ideológica por, em Dezembro passado, ter votado favoravelmente uma proposta de lei de liberalização da imigração da iniciativa da direita no poder naquele país. Se se quer avaliar eventuais viragens ao centro ou à direita são as políticas que devem ser analisadas, não as tácticas e conjunturas parlamentares.
4. Note-se, aliás, que este argumento é contrário à tese defendida num segundo comentário crítico de André Freire sobre o meu texto (inicialmente referido). Nesse comentário, André Freire acusa-me de sectarismo por ter criticado o seu uso de uma longa citação de um artigo de Mário Crespo para criticar o Governo e conclui: “se pessoas de direita (ou de esquerda, do governo ou sem ser do governo) disserem coisas com que concordo (ainda que apenas parcialmente, como era o caso e o sublinhei com clareza), então não hesitarei em concordar com elas e em citá-las”. Três reparos, no entanto, pois eu também cito e citarei à direita quando à direita encontrar motivos de acordo. Primeiro, eu não critiquei a citação à direita, mas a citação de Mário Crespo: e essa crítica reafirmo-a, sobretudo tendo em conta o teor do texto citado. Segundo, não é verdade que André Freire cite apenas em função do teor dos argumentos, sendo mais frequente fazê-lo a partir de imputações sobre a autoridade do citado: neste texto não foge à regra, começando por afirmar que “Mário Crespo é um grande senhor do jornalismo, penso que isso não oferece dúvidas a ninguém”. A mim oferece e não serei caso único. Terceiro, André Freire escusava de utilizar a estafada técnica do “eu não vou por aí, mas…”, no caso com o truque “disserem coisas com que concordo (ainda que apenas parcialmente, como era o caso e o sublinhei com clareza)”. Com clareza??!! Clareza seria especificar com o que concretamente concordava e com o que não concordava. Assim mais parece um disclaimer à António Balbino Caldeira.