Ninguém merece
1. Em 1998, o holandês Jaap Stam tornou-se o defesa mais caro de sempre da história do futebol ao ser transferido do PSV para o Manchester United por 10,6 milhões de libras. Lembro-me de uma entrevista do jogador em que este se pronunciava sobre a relação entre esse valor e o seu mérito enquanto jogador, controversa porque aqueles montantes apenas eram atingidos em transferências de avançados. Cito de memória (e portanto sem grande fidelidade formal). Entrevistador: acha que um defesa central merece mais de 10 milhões de libras? Stam: não (pausa), mas um avançado também não (pausa) e, pensando bem, ninguém merece 10 milhões de libras.
2. Recordei a entrevista na sequência de comentários críticos ao meu texto “Menos de um mexia por ano”. Argumentaram os críticos que o valor de um salário deve ter em conta o valor acrescentado pela actividade de quem recebe esse salário. Porém, o argumento meritocrático tem limites, em primeiro lugar porque a concretização de decisões meritórias requer o trabalho de outros, como recordava Brecht nas “Perguntas de um operário que lê”: “Quem construiu a Tebas das Sete Portas? / Nos livros constam nomes de reis. / Foram eles que carregaram as rochas? / […]”. Em segundo lugar, porque o sucesso de quem actua com mérito depende das condições colectivas que viabilizam essa actuação, o que significa que uma parte daquele valor acrescentado deve permitir não apenas a recompensa do mérito mas também a reprodução ampliada de tais condições. Finalmente, porque a justificação da recompensa material do mérito não pode ser socialmente desproporcionada tendo em conta a dispersão dos salários sem colocar em causa a legitimidade dessa mesma recompensa. Há outras formas, simbólicas, de recompensar o mérito, na actividade empresarial como noutras actividades. Quando subalternizamos a recompensa simbólica do mérito é o próprio valor do mérito como qualidade a promover que desvalorizamos.
3. Em rigor, voltamos sempre ao mesmo: a efectividade e a valorização do mérito dependem de condições sociais que só podem ser mantidas se uma parte do valor acrescentado pelas actividades de quem tem mérito contribuir para reproduzir essas mesmas condições. Para isso a solução é simples e conhecida há muito: chama-se progressividade dos impostos. Essa progressividade tem ainda vantagens económicas tornadas óbvias com a derrocada do modelo neoliberal: desincentiva o centramento da actividade empresarial na procura da máxima rentabilidade no curto prazo, independentemente da sustentabilidade da economia a médio e longo prazo.
4. Fazem falta mais Stams.