sábado, 5 de novembro de 2005

Motins em França

Os motins nos subúrbios de Paris constituem um aviso sério sobre o estado de degradação da coesão social e nacional em França como noutros países europeus.

1. É indispensável separar claramente a explicação dos motins do seu julgamento, e ser claro neste. A degradação da coesão social e nacional não está apenas na origem dos motins, é também por estes agravada. Não é pois possível desculpabilizar os comportamentos violentos dos jovens amotinados apenas porque a origem destes pode ser explicada por factores colectivos.
Porém, não é viável a sobrevivência de uma qualquer sociedade moderna e democrática se esta tiver que recorrer rotineiramente à violência para garantir a ordem social. É pois necessário, também, identificar os factores de desintegração social que estão na origem dos motins e actuar sobre eles.

2. Em minha opinião, o problema-chave é identitário, ainda que agravado por dinâmicas de exclusão social. Agravado apenas, porque pobre não tem que ser, automaticamente, delinquente! A sistemática e fácil associação entre pobreza e delinquência, para além de não ter suporte empírico, é estigmatizante. Porém, a pobreza pode facilitar a produção da delinquência e de comportamentos violentos quando está associada à rarefacção dos controlos morais que se tornam efectivos pelo julgamento colectivo. Ou seja, embora as nossas sociedades não sejam comunidades, só são viáveis quando incluem dinâmicas comunitárias de pressão social.
Ora, na maioria das sociedades europeias as “origens étnicas da nação” levam a uma categorização demasiado fácil dos emigrantes como “outros”. E é com relutância que se reconhece a esses “outros” o estatuto de verdadeiros nacionais. Assim, na Europa, a concessão da nacionalidade aos imigrantes é ainda vista mais como um prémio do que como um mecanismo de integração. Em consequência, mesmo em França, a aquisição da nacionalidade francesa pelos filhos dos imigrantes já nascidos no destino, a chamada “segunda geração”, só se torna plenamente efectiva entre os 13 e os 18 anos. A construção do sentimento de pertença à colectividade nacional é pois suspensa durante a juventude, reduzindo-se por esta via a construção do compromisso moral para com essa colectividade e a eficácia desta no controlo social destes jovens. E quando a este enfraquecimento da pertença colectiva se adiciona o racismo, ou seja, a rejeição pela colectividade, a desafectação de parte dos jovens pode ser total.

3. O problema da desafectação nacional agrava-se quando a distribuição dos imigrantes no território é marcada pela segregação residencial, isto é, quando os imigrantes estão residencialmente concentrados, frequentemente em subúrbios de elevada densidade populacional e construtiva. E agrava-se, porque essa concentração permite a criação de uma pertença colectiva segregada que, suprindo parcialmente a desafectação nacional, facilita a legitimação da revolta étnica. Pertença colectiva que tende a ser ideologicamente justificada com base num pretenso direito à diferença cultural independentemente do julgamento dessa diferença.
A ideia de que é possível, se não mesmo preferível, manter os imigrantes fora da nação remetendo-os para uma pretensa comunidade etnocultural, facilitada sempre que estes estão residencialmente concentrados, apenas sedimenta as dinâmicas de segregação e, portanto, de degradação da coesão social e nacional. O multiculturalismo, enquanto ideologia que suporta este ideal de “segregação benigna”, é pois parte do problema, nunca parte da solução.
Pelo contrário, é parte da solução o reforço sistemático da inclusão dos imigrantes e dos seus descendentes na colectividade nacional, por todos os meios. Como é parte da solução uma política de realojamento caracterizada pela mistura, não pela segregação.
Em França como em Portugal.
Para não nos espantarmos amanhã.