O passado que nunca existiu
Diz João César das Neves (J.C.N.) no DN de hoje (27/06/2005): “A família é aquele campo em que, tolamente, a sociedade moderna preconiza uma liberdade radical, sem limites.” As consequências seriam, segundo J.C.N., terríveis: viveríamos “no tempo que mais a [mulher] agride” e em que as crianças são “descartadas antes de nascer pelo aborto e mal-amadas depois pelo divórcio”.
A estas terríveis características da modernidade opor-se-ia um idílico tempo de harmonia e perenidade familiares! Quando e onde? Talvez num qualquer lugar imaginário nascido da mente de J.C.N., pois no mundo real do presente e do passado a vida era e é muito diferente do retrato traçado na coluna do DN.
Vivemos, ao contrário do passado, num mundo em que há limites à lei do mais forte dentro da família: é crime espancar mulher e filhos e não era, ou era mas tolerado, no passado ainda recente. Como é crime vingar com sangue o adultério que, apesar das diatribes de J.C.N., não nasceu hoje. Todas estas práticas e atitudes são, hoje, criminosas e vergonhosas, não legais e honrosas como no passado. Mas a realidade pouco importa a J.C.N., pelo que as mulheres nunca foram tão agredidas como no tempo em que a violência doméstica passou a ser ilegítima e ilegal.
Ficamos também a saber que o modo como os filhos são tratados depende, no essencial, da existência ou inexistência de divórcio. Pais que não se divorciam tratam bem os filhos; pais que se divorciam tratam mal. Patético! Embora haja um problema real que, obviamente, J.C.N. não quer ver: num mundo em que o divórcio tende a banalizar-se, é necessário construir novos modos de regulação jurídica das relações pais-filhos independentes do casamento (um dos temas tratados por Giddens no seu pequeno ensaio sobre a “terceira via”, um dos livros mais criticados e menos lidos dos últimos anos).
Ao contrário do que pensa J.C.N., as escolhas da nossa era não são entre família regulada e liberdade sem limites nas relações familiares, mas entre diferentes modos de regulação dessas mesmas relações. Modos de regulação que melhor protejam os direitos das crianças (uma invenção da modernidade) e que respeitem o estatuto de plena cidadania da mulher (outra invenção moderna). Nas antípodas de um passado que só por força de um intenso trabalho de reconstrução pode parecer idílico. Mas nada a fazer: é a esse trabalho de romantização do passado que se dedicam, desde os primeiros anos da era moderna, todos os conservadores.
E é a procura de regulação, para além da igualdade, e não “o libertarismo familiar”, que está presente, também, na reivindicação do casamento de homossexuais, o verdadeiro “espinho cravado na garganta de J.C.N.”. O problema não é o “libertarismo” (termo que parece querer dizer, para J.C.N., uma liberdade sem regras) mas a institucionalização (ou seja a construção de novas regras) de um tipo de relação que J.C.N. gostaria, antes, de ver estigmatizada e, se não proibida, pelo menos marginalizada — e portanto desregulada, “libertarizada”, pois, tomando como bons os argumentos de J.C.N., existe “libertarismo” sempre que as actividades humanas não são regulamentadas…