Capitulações
Ouvi hoje, na TSF, Ludgero Marques, Presidente da AEP, vociferar contra os trabalhadores públicos que acusou de viverem à custa do dinheiro dos privados. A acusação não é nova e de tanto se repetir transformou-se numa daquelas ideias feitas por (quase) todos adoptadas como verdade inquestionável. Quando interiorizada pela esquerda, anuncia a capitulação perante o pensamento conservador, que assim se transforma em pensamento único. Como aconteceu quando, segundo os jornais, um dirigente do PS tratou, em intervenção individual, os trabalhadores públicos por “parasitas”, no decurso de reunião partidária realizada uns meses atrás.
1. A ideia não é nova mas é falsa. Como todos os outros trabalhadores, os da função pública ganham o seu salário com o seu trabalho. A falácia da direita é fácil de desmontar. Imaginemos, por exemplo, que o ensino era todo particular: quem o pagaria? Os seus utilizadores, ou os seus pais, não lembrando a ninguém dizer que os professores viviam à custa de dinheiro alheio. Quando o ensino é público, os professores continuam a ganhar o seu salário com o seu trabalho, mas os utilizadores não lhes pagam directamente. Começam por entregar o dinheiro ao Estado que, depois, paga os professores. A única diferença é que, como os impostos são proporcionais e progressivos, os mais ricos pagam mais pelo ensino do que os mais pobres (ou deveriam…). E aqui é que está a raiz do problema: quem mais reclama sobre o destino do seu dinheiro é quem, mais ganhando, não quer mesmo, no fundo, é que ele seja redistribuído. Como Ludgero Marques.
Aceitar a ideia do “funcionário público parasita” é pois capitular perante a ofensiva da direita visando a crescente redução das funções redistributivas do Estado.
2. E é assim que, insidiosamente, gradualmente, em pezinhos de lã, se vai consumando uma crescente capitulação generalizada perante o pensamento da direita.
Como quando se aceita como verdade inquestionável que o mercado é uma espécie de ordem natural que não deve ser perturbada pela intervenção do Estado. E que é, também, uma ideia falsa (e a ela voltaremos).
Como quando se aceita como óbvias a naturalidade e a indispensabilidade da nação, enquanto colectividade imemorial e identidade (quase) sagrada. E que é, também, uma ideia falsa (e também a ela voltaremos).
Ou como quando, mais prosaicamente, se actua como se se considerasse que a direita é a ocupante “natural” do poder, devendo pois a esquerda aprender com ela a incorporar os modos ritualizados de desempenho público das funções públicas. Esquecendo que esses modos foram construídos para, precisamente, marcar, notabilizando-a, a separação entre governantes e súbditos (em lugar de cidadãos). E esquecendo que ao usar os óculos que a direita construiu para ver o mundo se vai, mais cedo ou mais tarde, paulatinamente, vendo o mundo como a direita o vê. Até à capitulação por distracção e habituação rotineira.