Multiculturalismo
Rui Marques, Alto-Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, defende, em entrevista ao Diário de Notícias de ontem (20/09/2005), que é necessário valorizar as questões da integração na definição das políticas de imigração. Tudo bem.
Defende também como modelo de referência, neste domínio da integração, as experiências multiculturalistas no Canadá e na Austrália. Tudo mal.
E tudo mal porque, enquanto ideologia e política, o multiculturalismo é, em minha opinião, um caminho a recusar liminarmente por qualquer Governo que, sendo de esquerda, preze minimamente a salvaguarda de valores liberais na esfera política. Este será, certamente, um tema recorrente no Canhoto durante os próximos tempos. Para início de debate, reproduzo um texto que publiquei no Público em 9 de Março de 2002.
Cidadãos de todo o mundo, uni-vos!
Não chegava que, num passado recente, a esquerda tivesse caído na armadilha do nacionalismo e, com isso, desbaratado uma herança de universalismo progressista. Agora, com a adesão de muitos ao multiculturalismo, uma das mais reaccionárias ideologias do nosso tempo, o suicídio corre o risco de ser total. Alguns exemplos, um pouco ditados pela indignação, do que está em jogo no jogo para retomar a identidade progressista, e portanto universalista, da esquerda.
1. Primeiro exemplo: o elogio da etnicidade
As velhas nações europeias dão-se mal com a crescente imigração. Reacções xenófobas e racistas contra estrangeiros geram por vezes entre estes respostas visando dignificar o seu estatuto, assim se criando identidades colectivas parcialmente suportadas por referências culturais por estes transportadas (ou desenvolvidas por outros que vivem situações semelhantes de discriminação). Mas, acima de tudo, identidades que incorporam a fronteira estabelecida pela discriminação e pela estigmatização. E assim chegamos à constituição do que se convencionou designar por “minorias étnicas”.
A resposta progressista óbvia a estes problemas consistiria em combater a discriminação e a estigmatização que estiveram na origem do surgimento daquelas “minorias” e, simultaneamente, em erodir as componentes da identidade nacional que mais dificultam a integração de quem partilha outros imaginários passados. Ou seja, reduzir ao mínimo indispensável essa chaga dos tempos modernos que dá pelo nome de nacionalismo, reafirmando em alternativa o ideal da igualdade do género humano. Em vez disso, os nossos multiculturalistas propõem-nos que generalizemos o que de pior há nas ideias nacionalistas, deslizando subrepticiamente da análise das funções da nação para a proclamação normativa das suas virtudes.
O resultado dessa resposta é assustador para quem preza a liberdade e o pluralismo. Multiplicar identidades construídas como heranças é reduzir as nossas escolhas, e portanto a nossa liberdade. Aceitar o resultado das clivagens operadas pela discriminação e pela resistência a essa discriminação traduz-se numa proliferação de espaços de pertença mutuamente irredutíveis, de claustrofóbicas micronações em permanente guerra. E encerrar-nos em classificações étnicas, numa lógica de puro “apartheid” (que, recorde-se, significava originalmente “desenvolvimento separado”), destrói qualquer hipóteses de invenção de novas e originais fusões culturais, bem como de utilização do pluralismo cultural como recurso para o enriquecimento de identidades individuais baseadas na intersecção (e não na sobreposição) de pertenças colectivas escolhidas (e não atribuídas).
De caminho somos conduzidos a um abjecto relativismo moral e político aproveitado por tudo quanto há de mais reaccionário para exigir o reconhecimento institucional de todas as pertenças colectivas e reocupar posições que pareciam ter sido radicalmente questionadas pelo desenvolvimento da modernidade. O crescimento do número de crentes de outras religiões é incompatível com o estatuto de privilégio da Igreja Católica nas suas relações com o Estado? Pois generalize-se esse estatuto, em vez de o eliminar, e liquide-se de vez com os saudáveis princípios da secularização e da laicização que tanto contribuíram para pacificar as nossas sociedades. E, já agora, classifiquem-se as crianças na escola em função da sua herança religiosa minando a função universalista da instituição.
2. Segundo exemplo: os direitos nacionais originais
O “revivalismo étnico” facilita ainda um eterno retorno ao passado para legitimar direitos colectivos (enunciado já de si arrepiante). E assim somos confrontados com a exigência de direitos territoriais colectivos pelos descendentes de uma qualquer colectividade do passado, real ou imaginária, numa espiral imparável de “reparação histórica”. Como não há limite para o recuo no passado, não há limite para a proliferação de uma espécie de “direitos adquiridos” em conflito permanente. Tem legitimidade quem diz que chegou primeiro! Ou melhor, quem conseguir identificar uma qualquer ascendência que tenha chegado primeiro, pois nenhum de nós chegou primeiro: estamos ao mesmo tempo no mesmo espaço.
A resposta progressista óbvia a estas reivindicações seria a de fazer justiça, hoje, às pessoas de hoje, na base da universalização dos direitos civis e sociais e da ampliação dos espaços da cidadania democrática. Seria a de centrar a resolução de eventuais discriminações herdadas com a multiplicação de oportunidades de futuro. Seria promover ideais cosmopolitas para fundar uma concepção da nação enquanto colectividade territorial construída, cada vez mais, numa base contratual e voluntária, e cada vez menos com base em “heranças de sangue”.
Mas não, os nossos multiculturalistas decidiram que, como guia da acção política, a referência ao passado deve substituir a procura de um futuro melhor. E toca de apoiar a criação de tantas micronações quantas imaginar se possam. Que da proliferação de micronações resulte um sem número de conflitos dramáticos com a sua legião de limpezas étnicas e de refugiados é um pormenor de que, parecem estar certos, a história os absolverá.
3. Terceiro exemplo: a nossa (ocidental) culpa herdada
Aqui navegamos em plena indigência intelectual. No passado os estados ocidentais praticaram a escravatura? Então o ocidente tem uma dívida a pagar! Não importa que no passado o esclavagismo não fosse um exclusivo ocidental. Não importa, também, que alguns dos principais ideais que orientaram a luta pela eliminação da escravatura tenham sido uma invenção ocidental. Paga!
Mas mais importante ainda: não importa que nenhum de nós, hoje, tenha escravizado alguém, não importa que as gerações anteriores fossem outra sociedade. A definição e reparação do presente está condenada a orientar-se sempre pela remissão ao passado. Não importa juntar esforços agora, em torno de valores e não de heranças, de projectos e não de memórias, para construir um mundo melhor, hoje e no futuro. O eterno recuo ao passado é o critério para agir no presente (e se isto não é o que, literalmente, significa ser-se reaccionário, então já não sei o que significa a palavra).
De caminho, absolvem-se alguns dos mais desprezíveis dirigentes políticos anti-democráticos e decide-se atenuar os efeitos da sua criminosa governação de hoje, pagando uma pretensa dívida do passado. E quanto à possibilidade de apoiar mudanças políticas, hoje, para garantir um futuro melhor para os povos sujeitos àquela governação estamos conversados: a solidariedade internacionalista é estigmatizada como intromissão nos assuntos internos de outros.
Todos estes argumentos têm algo de comum: o critério fundamental de julgamento social reside na irredutabilidade da pertença colectiva, se possível ancestral.
Como essa pertença é uma permanente invenção de narrativas históricas passadas, o referencial privilegiado da acção política passa a ser a invenção do passado, não a invenção do futuro. Como a pertença é colectiva, o objectivo das mudanças a operar passa a ser o reforço do colectivo, não a defesa do indivíduo livre. Como essa pertença é herdada, as componentes mais valorizadas da vida social passam a ser as heranças, transfiguradas em identidades, não as escolhas livres.
E o que é feito daquilo que pensávamos ser aquisições civilizacionais fundamentais? Como, por exemplo, o ideal, trivial, da criação de condições para a afirmação de cada um como indivíduo livre, independentemente das suas heranças sociais, como (assumindo o risco do “cliché”), cidadão do mundo (e, já agora, de um mundo felizmente cada vez mais global)?
“Citoyens… !”
E tudo mal porque, enquanto ideologia e política, o multiculturalismo é, em minha opinião, um caminho a recusar liminarmente por qualquer Governo que, sendo de esquerda, preze minimamente a salvaguarda de valores liberais na esfera política. Este será, certamente, um tema recorrente no Canhoto durante os próximos tempos. Para início de debate, reproduzo um texto que publiquei no Público em 9 de Março de 2002.
Cidadãos de todo o mundo, uni-vos!
Não chegava que, num passado recente, a esquerda tivesse caído na armadilha do nacionalismo e, com isso, desbaratado uma herança de universalismo progressista. Agora, com a adesão de muitos ao multiculturalismo, uma das mais reaccionárias ideologias do nosso tempo, o suicídio corre o risco de ser total. Alguns exemplos, um pouco ditados pela indignação, do que está em jogo no jogo para retomar a identidade progressista, e portanto universalista, da esquerda.
1. Primeiro exemplo: o elogio da etnicidade
As velhas nações europeias dão-se mal com a crescente imigração. Reacções xenófobas e racistas contra estrangeiros geram por vezes entre estes respostas visando dignificar o seu estatuto, assim se criando identidades colectivas parcialmente suportadas por referências culturais por estes transportadas (ou desenvolvidas por outros que vivem situações semelhantes de discriminação). Mas, acima de tudo, identidades que incorporam a fronteira estabelecida pela discriminação e pela estigmatização. E assim chegamos à constituição do que se convencionou designar por “minorias étnicas”.
A resposta progressista óbvia a estes problemas consistiria em combater a discriminação e a estigmatização que estiveram na origem do surgimento daquelas “minorias” e, simultaneamente, em erodir as componentes da identidade nacional que mais dificultam a integração de quem partilha outros imaginários passados. Ou seja, reduzir ao mínimo indispensável essa chaga dos tempos modernos que dá pelo nome de nacionalismo, reafirmando em alternativa o ideal da igualdade do género humano. Em vez disso, os nossos multiculturalistas propõem-nos que generalizemos o que de pior há nas ideias nacionalistas, deslizando subrepticiamente da análise das funções da nação para a proclamação normativa das suas virtudes.
O resultado dessa resposta é assustador para quem preza a liberdade e o pluralismo. Multiplicar identidades construídas como heranças é reduzir as nossas escolhas, e portanto a nossa liberdade. Aceitar o resultado das clivagens operadas pela discriminação e pela resistência a essa discriminação traduz-se numa proliferação de espaços de pertença mutuamente irredutíveis, de claustrofóbicas micronações em permanente guerra. E encerrar-nos em classificações étnicas, numa lógica de puro “apartheid” (que, recorde-se, significava originalmente “desenvolvimento separado”), destrói qualquer hipóteses de invenção de novas e originais fusões culturais, bem como de utilização do pluralismo cultural como recurso para o enriquecimento de identidades individuais baseadas na intersecção (e não na sobreposição) de pertenças colectivas escolhidas (e não atribuídas).
De caminho somos conduzidos a um abjecto relativismo moral e político aproveitado por tudo quanto há de mais reaccionário para exigir o reconhecimento institucional de todas as pertenças colectivas e reocupar posições que pareciam ter sido radicalmente questionadas pelo desenvolvimento da modernidade. O crescimento do número de crentes de outras religiões é incompatível com o estatuto de privilégio da Igreja Católica nas suas relações com o Estado? Pois generalize-se esse estatuto, em vez de o eliminar, e liquide-se de vez com os saudáveis princípios da secularização e da laicização que tanto contribuíram para pacificar as nossas sociedades. E, já agora, classifiquem-se as crianças na escola em função da sua herança religiosa minando a função universalista da instituição.
2. Segundo exemplo: os direitos nacionais originais
O “revivalismo étnico” facilita ainda um eterno retorno ao passado para legitimar direitos colectivos (enunciado já de si arrepiante). E assim somos confrontados com a exigência de direitos territoriais colectivos pelos descendentes de uma qualquer colectividade do passado, real ou imaginária, numa espiral imparável de “reparação histórica”. Como não há limite para o recuo no passado, não há limite para a proliferação de uma espécie de “direitos adquiridos” em conflito permanente. Tem legitimidade quem diz que chegou primeiro! Ou melhor, quem conseguir identificar uma qualquer ascendência que tenha chegado primeiro, pois nenhum de nós chegou primeiro: estamos ao mesmo tempo no mesmo espaço.
A resposta progressista óbvia a estas reivindicações seria a de fazer justiça, hoje, às pessoas de hoje, na base da universalização dos direitos civis e sociais e da ampliação dos espaços da cidadania democrática. Seria a de centrar a resolução de eventuais discriminações herdadas com a multiplicação de oportunidades de futuro. Seria promover ideais cosmopolitas para fundar uma concepção da nação enquanto colectividade territorial construída, cada vez mais, numa base contratual e voluntária, e cada vez menos com base em “heranças de sangue”.
Mas não, os nossos multiculturalistas decidiram que, como guia da acção política, a referência ao passado deve substituir a procura de um futuro melhor. E toca de apoiar a criação de tantas micronações quantas imaginar se possam. Que da proliferação de micronações resulte um sem número de conflitos dramáticos com a sua legião de limpezas étnicas e de refugiados é um pormenor de que, parecem estar certos, a história os absolverá.
3. Terceiro exemplo: a nossa (ocidental) culpa herdada
Aqui navegamos em plena indigência intelectual. No passado os estados ocidentais praticaram a escravatura? Então o ocidente tem uma dívida a pagar! Não importa que no passado o esclavagismo não fosse um exclusivo ocidental. Não importa, também, que alguns dos principais ideais que orientaram a luta pela eliminação da escravatura tenham sido uma invenção ocidental. Paga!
Mas mais importante ainda: não importa que nenhum de nós, hoje, tenha escravizado alguém, não importa que as gerações anteriores fossem outra sociedade. A definição e reparação do presente está condenada a orientar-se sempre pela remissão ao passado. Não importa juntar esforços agora, em torno de valores e não de heranças, de projectos e não de memórias, para construir um mundo melhor, hoje e no futuro. O eterno recuo ao passado é o critério para agir no presente (e se isto não é o que, literalmente, significa ser-se reaccionário, então já não sei o que significa a palavra).
De caminho, absolvem-se alguns dos mais desprezíveis dirigentes políticos anti-democráticos e decide-se atenuar os efeitos da sua criminosa governação de hoje, pagando uma pretensa dívida do passado. E quanto à possibilidade de apoiar mudanças políticas, hoje, para garantir um futuro melhor para os povos sujeitos àquela governação estamos conversados: a solidariedade internacionalista é estigmatizada como intromissão nos assuntos internos de outros.
Todos estes argumentos têm algo de comum: o critério fundamental de julgamento social reside na irredutabilidade da pertença colectiva, se possível ancestral.
Como essa pertença é uma permanente invenção de narrativas históricas passadas, o referencial privilegiado da acção política passa a ser a invenção do passado, não a invenção do futuro. Como a pertença é colectiva, o objectivo das mudanças a operar passa a ser o reforço do colectivo, não a defesa do indivíduo livre. Como essa pertença é herdada, as componentes mais valorizadas da vida social passam a ser as heranças, transfiguradas em identidades, não as escolhas livres.
E o que é feito daquilo que pensávamos ser aquisições civilizacionais fundamentais? Como, por exemplo, o ideal, trivial, da criação de condições para a afirmação de cada um como indivíduo livre, independentemente das suas heranças sociais, como (assumindo o risco do “cliché”), cidadão do mundo (e, já agora, de um mundo felizmente cada vez mais global)?
“Citoyens… !”