segunda-feira, 17 de outubro de 2005

De novo a lei da nacionalidade (corrigido)

Na passada quinta-feira (13 de Outubro), o Plenário da Assembleia da República viabilizou a negociação na especialidade dos projectos de todos os partidos sobre a revisão da lei da nacionalidade. Esta é uma boa notícia, pois permitirá chegar ao fim com uma lei melhor do que a que resultaria da votação, em alternativa, dos projectos apresentados.
À esquerda, esses projectos são já, em todos os casos, melhores do que a lei actualmente em vigor. Desses, o projecto com melhores condições de aprovação, o do Partido Socialista, embora propondo “uma lei mais justa” do que a actual, deixa, a quem o aprecia, uma sensação de oportunidade (lamentavelmente) perdida. Nomeadamente, pelas restrições que teima em manter em relação à concessão da nacionalidade portuguesa originária aos filhos de estrangeiros nascidos em Portugal.

1. Em primeiro lugar, não percebo por que razão uma lei que está para além da regulação dos fluxos migratórios, uma lei que tem directamente a ver com direitos fundamentais da pessoa humana, deve ser tão limitada por considerações relativas aos seus efeitos sobre o volume das migrações internacionais para Portugal. Argumenta-se, e com razão, que a aquisição da nacionalidade portuguesa por crianças nascidas em Portugal filhas de pais estrangeiros em situação irregular poderá “constituir um convite à imigração clandestina”. Pois pode. Mas esse não é o problema. O que temos de saber é se os custos de um eventual aumento da imigração irregular serão superiores ou inferiores aos ganhos de integração obtidos com a lei. Ou se demonstra com razoabilidade que esses custos serão superiores ou não haverá razão para a restrição que se propõe em função da situação de regularidade (ou irregularidade) dos pais.
Se apenas tomássemos decisões sem custos colaterais, teríamos de prescindir de qualquer medicação, mesmo em caso de doença grave, devido aos efeitos secundários de todo o medicamento. E a analogia não é fortuita. O “organismo social” nacional está gravemente “enfermo”, justificando-se pois alguns riscos na sua cura. Penso que só um conservadorismo exacerbado poderá justificar a cegueira perante o que está verdadeiramente em jogo. Conservadorismo que, eventualmente, será fruto de uma ilusão tecnocrata de controlo perfeito das políticas. Mas que faz lembrar demais as cautelas inscritas no preâmbulo de um dos planos de fomento do Estado Novo, onde se aconselhava cautela com o ritmo da industrialização pois esta, se rápida, provocaria instabilidade social. O que era verdade…

2. Se percebo o argumento sobre a relação entre nacionalidade e imigração irregular, mesmo se com ele não concordo, já não percebo de todo o argumento da “ligação efectiva e estável à comunidade nacional”. E é esse o único argumento que me tem sido proposto sempre que manifesto a minha incompreensão pela restrição da possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa originária, pelos filhos de estrangeiros nascidos em Portugal, em função do tempo de residência dos pais no nosso país: pelo menos seis anos. Mas desde quando a criança, e é desta que falamos, terá, quando nasce, mais ou menos ligação à “comunidade nacional” (seja lá isso o que for) em função do tempo de residência dos pais em Portugal? Ou, já agora, da sua nacionalidade? Quando se nasce não se tem ligações sociais a ninguém! Ou, muito menos, a qualquer entidade simbólica abstracta, como a nação! O argumento está invertido. A concessão da nacionalidade é um dos mecanismos para construir, desde o início, essa ligação efectiva à nação de imigração dos pais. A recusa da nacionalidade constitui, pelo contrário, um obstáculo adicional à construção dessa ligação efectiva.
Acresce que entramos, com estes argumentos, num campo perigoso, como pode ser ilustrado com a intervenção, no Parlamento, do inefável Nuno Melo. O deputado do CDS criticou as propostas à esquerda, incluindo as do PS, argumentando que a concessão da nacionalidade deveria assentar “num esforço do próprio beneficiário”, pois este teria “que mostrar que merece” ser português. Mas que provas de mérito de portugalidade transportava Nuno Melo quando nasceu? As da “raça”…?!