quinta-feira, 24 de novembro de 2005

A cultura contra a política

O discurso multiculturalista é apenas uma das manifestações de um movimento mais geral de culturalização da política que culmina na tentativa de despolitização das escolhas sociais.
Exemplar desses efeitos de despolitização é a entrevista de Assis Malaquias à Pública (20/11/2005). A propósito do novo papel da China em África, aí se pode ler, nomeadamente, que
Em África os políticos estão a reconhecer que a democracia liberal pode não ser o modelo adequado. […] O que o Ocidente está a tentar impor em África baseia-se num leque de valores que são ocidentais. […] Não é que a África não esteja a compreender, é que os conceitos são diferentes, a linguagem é diferente. E a China está a falar uma linguagem e tem conceitos e valores que são semelhantes aos africanos. […] Há africanos que pensam que o indivíduo é central, mas muitas tradições africanas não têm o indivíduo como centro da sociedade, têm o grupo, que pode ser a família, a tribo, ou o que seja. O indivíduo identifica-se com esse grupo. Na China há semelhanças e os africanos estão a reconhecer essas semelhanças.

Toda esta argumentação tem um pequeno problema. É que o individualismo e a democracia liberal, enquanto modelos de referência, só são ocidentais porque, no Ocidente, venceram o combate às tradições anti-individualistas e iliberais. No limite, as tradições referidas por Malaquias são, enquanto tradições, tão africanas ou chinesas quanto europeias. A diferença é que na Europa a defesa dessas tradições pelos conservadores perdeu o combate político e ideológico por que passou a construção da modernidade. A modernidade só é ocidental porque foi no Ocidente que os conservadores foram política e ideologicamente derrotados, não porque as tradições ocidentais fossem liberais ou individualistas!
Para uma pequena e acessível história da resistência conservadora, na Europa, às ideias do indivíduo e do liberalismo, veja-se o texto de Nisbet inserido na sua História da Análise Sociológica (organizada com Bottomore) (1). Aí se destaca, por exemplo, a tese de Bonald (conservador francês que viveu na passagem do séc. XVIII para o séc. XIX) segundo a qual a família e não o indivíduo é a unidade elementar da sociedade. Ou ainda, a tese segundo a qual
Os indivíduos, como os conhecemos, como existiram desde o começo, são inseparáveis dos contextos sociais modeladores da família, do clã, comunidade e associação. [p. 140]

Na crítica ao individualismo moderno, o pensamento conservador faz da história da família e da comunidade a condição indispensável do nosso presente. Citando uma vez mais Nisbet (agora a propósito de Burke)
Somos, essencialmente, aquilo que a tradição histórica nos fez. [p. 148]

Quando a cultura substitui a política, é esta legitimação, pela tradição, da recusa dos valores do indivíduo e do liberalismo que se consuma. Na Europa dos séculos XVII e XIX, como na África de hoje.

(1) Robert Nisbet, “Conservantismo”, em Tom Bottomore e Robert Nisbet (orgs.), História da Análise Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980 (ed. original: 1978), pp. 119-165.


ADENDA

Comentário de Luís Marvão. Bem, parece-me uma argumentação um tanto ou quanto simplista. As fundações filosóficas da Democracia estão no Ocidente, a cultura individualista desenvolveu-se e floresceu aí. E importaria então perguntar : por que razão o “modelo de Democracia liberal e do individualismo” triunfou no Ocidente e não noutras paragens civilizacionais? Quais as condicionantes sociais e culturais que explicam essa ascensão? Com isto, não quero afirmar que a Democracia Liberal, enquanto intrinsecamente ocidental na sua origem, não possa germinar em sociedades com uma matriz cultural distinta (eu sei que é redutor falar neste termos, pois as culturas não são estanques e o intercâmbio cultural dos nosso dias é cada vez maior). Temos aliás exemplos bem sucedidos, como o Japão e a Índia, embora neste dois casos não seja alheia a forte presença ocidental (no primeiro, a colonização inglesa, no segundo, o pós-guerra sob o signo americano). Penso que a Democracia liberal pode também florescer em África, muitas vezes o argumento culturalista é utilizado para justifica derivas autoritárias ou o imobilismo das tradições anti-liberais. Parece-me ser esse o caso do analista Assis Malaquias.

Resposta ao comentário. Perguntar “por que razão o “modelo de Democracia liberal e do individualismo” triunfou no Ocidente e não noutras paragens” tem pouco a ver com a discussão feita neste texto sobre a afirmação de Assis Malaquias de que em África a democracia liberal é inviável porque em África as tradições são anti-individualistas e iliberais. O meu argumento é sobre esta segunda afirmação, não sobre a pergunta de Luís Marvão, sendo que a dita afirmação pressupõe que no Ocidente a tradição era liberal, o que não faz qualquer sentido. Todo o pensamento tradicional é anti-individualista e iliberal, em África como na Europa. Agora, a resposta à pergunta de Luís Marvão, aliás uma pergunta clássica da sociologia e da ciência política, é importante não para justificar a impossibilidade da democracia liberal em África e na China, mas para identificar as condições da sua transição mais rápida e consolidada para a democracia. Mais rápida porque não é preciso inventar o que já está inventado e pode agora ser difundido, como são difundidas, com sucesso, muitas outras características não tradicionais do “Ocidente”. Nomedamente aquelas que, tendo um valor material, instrumental, são absorvidas sem grandes reparos sobre a sua não adequação à tradição anti-individualista fora do Ocidente…