sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Interesses

Pouco poderá vir a fazer tão mal à nossa vida democrática e ao campo da esquerda como o actual discurso “contra os interesses”.
Antes de mais, porque a alternativa ao conflito de interesses é o conflito de valores. E como o primeiro é muito mais facilmente institucionalizável do que o segundo, o confronto de valores tenderia a desembocar num reforço das cruzadas morais e de todos os fundamentalismos. Seria, portanto, o princípio do fim da pacificação da política, conseguida no passado por via da institucionalização do conflito… de interesses.
A não ser que os campos não se definissem por simetria. O que é mais plausível, tendo em conta que o resultado da guerra generalizada contra a “expressão organizada dos interesses” tende a ser fortemente assimétrico. Os interesses dos poderes de facto são muito menos afectados por essa guerra do que os interesses politicamente constituídos para darem poder a quem não o tem de facto. No fim da guerra, os poderes de facto ficariam sós, sem outro poder concorrente que o do Estado. Essa assimetria, a concretizar-se, representaria o princípio da des-democratização da nossa sociedade.
Acresce que a situação assim criada teria outra característica favorável aos poderes de facto: a despolitização do discurso político. Pois a “guerra aos interesses” representa não o fim destes mas a proclamação de uma hierarquia de interesses, em que aos “mesquinhos” interesses particulares se oporia a “bondade” de um qualquer interesse mais geral, nacional de preferência. Seria o princípio do despotismo por esvaziamento do debate político e sua substituição pela autoridade tecnocrata.

Temo que, por pressão orçamental e algum fundamentalismo moral, estejamos a correr o risco de acabar numa redução da esquerda à esquerda dos valores, que tenderia a conviver com uma direita entretanto reduzida, depois da derrota de Portas e Santana, à direita dos interesses. E, dadas as assimetrias referidas, à vitória folgada da direita, por etapas. Ocupando primeiro o poder presidencial para, a partir deste, e quando o trabalho sujo da “guerra contra os interesses” estiver terminado, dispensar a esquerda e hegemonizar o exercício da soberania.
Mas não o do poder. Esse seria partilhado com os poderes de facto, em particular os económicos e mediáticos. E com mais ninguém.

É pois necessário reavaliar os caminhos percorridos. Se é inadiável a remoção dos abusos corporativos do passado, é imperioso preservar a representação dos interesses por quem não tem poder para os exprimir e sustentar de outro modo.
Pois só assim se poderá preservar algum equilíbrio de poderes fora do campo estrito da política.