Radicalismo e intolerância (corrigido e actualizado)
O debate sobre a batalha que não existe “contra os crucifixos” tem pelo menos o mérito de revelar onde mora hoje o radicalismo em Portugal: nos sectores mais conservadores do espectro político. Quando no Governo e nos partidos do centro e da esquerda predomina a cautela, quando PCP e BE reconhecem não ser esta uma “guerra a comprar”, não se percebe sequer, se usarmos a razão, contra que moinhos investem os que proclamam em perigo a Nação e a liberdade. Porque não é esta uma “guerra a comprar” percebe-se pois pelo crescendo de demagogia que caracteriza a intervenção de radicais à direita.
Quem não é benfiquista não é bom chefe de família
Em duas cartas de leitores publicadas hoje (30/11/05) no DN, somos confrontados com a proclamação (por Graça Lérias) de que a tradição católica não se traduz unicamente numa afirmação de fé, mas ela é imagem, é afirmação identitária. Adriano Pereira, na outra carta, informa-nos, em termos imperativos, que a religião católica está no cerne da nossa nacionalidade. Está enraizada na cultura portuguesa… Mais prosaicamente, a dona Maria, em resposta a Fernanda Câncio (também no DN de hoje, 30/11/05), revela surpresa quando confrontada com a possibilidade de, a aceitar-se a presença do crucifixo nas salas de aula, ter também de se aceitar a presença aí de símbolos de outras confissões religiosas: mas se sou portuguesa porque haviam de vir aqui pôr outra religião?
Esta ligação entre nação e religião, esta exigência de exclusão do pluralismo religioso na definição da pertença nacional, esta tirania da (eventual) maioria, profundamente iliberal, é radical e perigosa, pois é um dos suportes da transformação da identidade nacional numa “identidade assassina”.
Lembra também, demais, os tempos de “Fátima, futebol e fado”. Nomeadamente quando Adriano Pereira, na carta já citada, afirma que negar as práticas do catolicismo na nossa cultura é negar esse Portugal das festas de “santos populares”, procissões, romarias e arraiais que aprendemos a amar nos bancos da escola primária. E, já agora, com couratos e vinho da malga. Ora bolas, não posso preferir um Portugal mais moderno e cosmopolita?
Você acredita no Pato Donald?
A tentativa de ligação umbilical entre nação e religião faz-se essencializando: o coração português seria católico e sê-lo-ia há séculos. Ou, como sustenta Graça Léria na carta já citada: a tradição religiosa […está] radicada no coração das coisas… Vivemos num país há oitocentos anos cristão, somos uma cultura judaico cristã […] da qual é impossível separarmo-nos, a menos que […] queiramos incorrer numa atitude patética semelhante à de se arrancar de um corpo os pêlos, os dentes, as unhas, tiras da própria pele.
E assim se transforma sociedade em organismo (nada que não tenha uma longa tradição), a seguir investido de atributos humanos (idem). Chama-se a isto antropomorfização e dá para tudo justificar. Ou para transformar um pato em gente. Embora no caso do pato haja uma vantagem: sabemos que não é a sério. Como não é também, embora seja mais fácil de fazer parecer que sim, transformar em gente o que vulgarmente se chama sociedade.
Pedro e o lobo
Para terminar, o argumento do atentado à liberdade. Sustenta-o o CDS, que vê a liberdade religiosa em perigo de cada vez que um crucifixo é retirado de uma sala de aula. Sustenta-o António Pinheiro Torres em carta também hoje (30/11/05) publicada no DN: para nós católicos, o ponto fundamental é este: o da liberdade. A liberdade de educarmos os nossos filhos como entendermos. […] A liberdade de viver a nossa fé nas ruas e nas praças.
Não sabia que uma sala de aula não se distinguia de uma rua ou praça pública. Como não sabia também que tinha sido proibido o ensino particular em Portugal. Devo andar distraído. Porque esta é a questão. Ninguém põe em causa o direito à expressão pública das convicções religiosas de quem quer que seja. Ou das convicções não religiosas, já agora. Ou políticas. Mas da mesma forma que ninguém se lembraria de ver a liberdade política em perigo por não ser permitida a afixação, nas salas de aula de uma escola, dos símbolos políticos das preferências maioritárias da “comunidade” onde essa escola está inserida, não se percebe também porque se vê a liberdade em perigo na polémica sobre os crucifixos. Convém não invocar em vão o argumento da ameaça à liberdade. Para nos acreditarem quando ela estiver mesmo em causa.
A escola pública não é uma rua ou praça, é, ou deve ser, um lugar especializado de aprendizagem e de integração social. Deverá por isso ser plural sendo neutra no que, irremediavelmente, divide os portugueses.
ADENDA (Actualização)
No fim-de-semana e na segunda-feira multiplicaram-se as reacções radicais contra o não facto da (não) retirada compulsiva e generalizada dos crucifixos das salas de aula. Tudo estaria bem (apesar do não facto…) não fosse o exagero no recurso à deturpação dos termos do debate, quando não mesmo à inverdade, bem como à pura e simples batota argumentativa.
a.1. Bagão Félix no DN de domingo (04/12/05), em “Crucifixo: haja coerência”, e Francisco Sarsfield Cabral no DN de segunda-feira (05/12/05), em “Laicismo”, seguem a estratégia da deturpação, bem ilustrada nestas duas frases:
A liberdade religiosa não se limita ao plano do direito individual na esfera privada intimista, introspectiva. (Bagão Félix)
Aliás, ainda não vi reclamar a eliminação de símbolos maçónicos em estátuas e monumentos nas nossas ruas, por ofenderem os que não partilham tais convicções. E os crucifixos, ofendem alguém? Haja bom senso. (Sarsfield Cabral)
Deturpação porque retirar crucifixos de salas de aula sempre que há queixas sobre a sua presença e essas queixas são consideradas pertinentes depois de avaliadas não é o mesmo que esvaziar o espaço público de símbolos religiosos. Claro que ninguém reclama a eliminação “de símbolos maçónicos em estátuas e monumentos”, como ninguém reclama a remoção de cruzes ou outros símbolos religiosos de monumentos ou edifícios! (Mas, já agora, também ninguém propõe a colocação de símbolos maçónicos ou religiosos não cristãos nas salas de aula.)
a.2. A inverdade nem merece comentário muito desenvolvido, pois pode ser que se deva simplesmente à incompetência de quem confunde o número de queixas de uma associação (20) com o número de escolas em que existem crucifixos em salas de aula (centenas?). Aliás, esta estratégia de desvalorização do problema é curiosa e tem outras variantes, como seja dizer que a presença dos crucifixos é problema menor que não devia mobilizar tanta energia: não se sabendo então por que razão colocam os autores de tal argumento tanta energia na sua causa.
a.3. Nos mesmos artigos, aqueles dois cronistas juntam-se ao Miguel dos comentários no Canhoto para bramarem indignados contra o facto de não haver coerência quando se questionam os crucifixos nas salas de aula e não se questionam os feriados religiosos. Este argumento é pura batota, nomeadamente quando enunciado por Bagão Félix. Os feriados religiosos que temos preservam a sua actualidade (e não origem) cristã por força da Igreja Católica, que reage vigorosamente quando o Estado tenta dessacralizá-los transformando-os em simples dias de não trabalho encostados ao fim-de-semana para evitar pontes. Como aconteceu quando Bagão Félix propôs aquela deslocação, para recuar depois a toda a pressa… A batota continua quando se tenta fazer crer que os crucifixos marcam presença secular na escola (talvez mesmo antes de estas existirem?), por tradição. Falso: foi por decisão política (do Estado Novo) que lá foram colocados, não por costume perdido na noite dos tempos.
Para além de, como já o referi noutro texto, o argumento da tradição não ser necessariamente boa justificação para o que quer que seja…