Quando o pessimista ataca pelas costas
A crítica da política e dos políticos em abstracto (tipo “a política é um nojo” ou “os políticos são todos uns corruptos”) constitui um discurso tipicamente antidemocrático. Pode, se não for contrariado com firmeza, constituir um exemplo típico da promessa auto-realizada: se todas as pessoas de bem se convencerem de que só os malandros estão na política porque esta é coisa de malandros e, portanto, se afastarem da actividade política, esta corre, de facto, o risco de ficar entregue a gente menos recomendável.
Por isso reajo com irritação ao discurso populista. E daí a minha surpresa ao deparar com uma citação aristrocrático-populista como destaque num texto de um dos meus cronistas preferidos, o José Eduardo Agualusa, na Pública de hoje (11/12/05). Nã, decidi, quero ler o que ele diz mesmo na crónica. E fiz bem. Porque, claro, a frase em destaque era a fala do “mau” da história (o “pessimista”), não do “bom”. O bom
“…era tão optimista que, inclusive, acreditava nos políticos, ou pelo menos em alguns políticos, e na democracia. […] O optimista não se esforçava por alcançar a aprovação dos outros. Falava com paixão das vidas minúsculas dos pardais e dos matizes das rosas que plantava no jardim. Ouvindo-o falar a vida parecia um facto inédito, uma festa.”
No fim, o “optimista” fica com a heroína da “estória” e o “pessimista” descobre-se só. Ufa…! O “pessimista” tinha atacado pelas costas, destacando do texto o que o seu senso comum preferia, mas eu podia continuar a ler os textos de José Eduardo Agualusa sem surpresas desagradáveis. E podia continuar a ler as proclamações desagradáveis onde elas não me causavam surpresa. Por exemplo, nas crónicas do “pessimista” António Barreto que hoje retorna, no Público (11/12/05) a um dos seus temas preferidos: o lodaçal da corrupção em que estaria mergulhada a vida política e económica do país. A propósito da campanha eleitoral, pede o “pessimista”
“Gostaria que falassem mais de corrupção. Que nos dissessem se estão ou não ao corrente do que se passa em Portugal. Que exprimissem a sua opinião sobre os negócios imobiliários das autarquias. Que nos informassem se sabem e o que pensam das dificuldades de investigar quaisquer situações que comprometam poderosos, grandes empresários, dirigentes desportivos, partidos e órgãos políticos. […] Que dissessem se concordam com a promiscuidade existente, entre política e empresas, nos grandes negócios…”
Quando a suspeição sobre os “negócios do Estado” é simplesmente assim lançada, repetidamente, sem qualquer concretização fundamentada, escancaram-se as portas ao populismo. E vale a pena definir de que se fala quando se fala de populismo:
“populismo Movimento político heterogéneo caracterizado pela aversão às elites económicas e intelectuais, pela denúncia da corrupção política que, supostamente, afecta todos os outros actores políticos, bem como pelo constante apelo ao povo, entendido como um amplo sector interclassista, para que castigue o Estado. Sob esta designação podem ser englobadas diversas ideologias políticas de carácter normalmente autoritário pois, ao reclamarem para si a encarnação das pretensões maioritárias, recusam a necessidade de intermediários…”
[Ignacio Molina (2003), Conceptos Fundamentales de Ciencia Política, Madrid, Alianza Editorial, p. 99]
Barreto, é verdade, apenas entreabre a porta do populismo, pois não cai na tentação autoritária. A vénia a esta fica a cargo de Vasco Pulido Valente, também no Público de hoje:
“Para cúmulo, a frustração e a miséria assistem dia a dia ao triunfo da impunidade. Da negligência médica à fraude política e do negócio de favor ao roubo puro e simples, o crime entrou tranquilamente nos costumes. Mesmo a Ditadura, no seu tempo, se recusou a ir tão longe.”
Quem assim relativiza os males da ditadura e enjeita os bens da democracia não pode ser aliado em causa alguma. Nem para bater Cavaco!