terça-feira, 13 de dezembro de 2005

A raça contra a nação

1. Cavaco baralhou-me. No debate com Louça, e a propósito da lei da nacionalidade, defendeu que caso os partidos não fossem “cuidadosos” nas alterações em discussão no Parlamento, a imigração corria o risco de crescer tanto que os “portugueses poderiam ficar em minoria”.
A substância do argumento é ridícula como de pronto foi assinalado por Louça. De facto, nos últimos 30 anos o número de estrangeiros a residir em Portugal passou de cerca de 30 mil para um pouco menos de 400 mil, pelo que só invadidos, literal e não metaforicamente, teríamos amanhã em Portugal mais de 10 milhões de imigrantes. Mas a lógica é mais misteriosa do que a substância, pois se todos esses novos imigrantes viessem para Portugal para serem portugueses, os portugueses não ficariam em minoria. Foi então que me recordei de uma pequena história vivida no comboio entre Frankfurt e Berlim no início da década de 90.

2. Nessa viagem, conversando com um alemão, fui a certa altura interrogado sobre o número de estrangeiros a viver em Portugal, crescente segundo o meu interlocutor. Respondi-lhe que seriam uns 120 mil, o que o surpreendeu: “Não pode ser”, argumentou, “vi muitos negros em Lisboa”. Respondi que podia estar a ter uma visão equivocada por a imigração africana estar concentrada em Lisboa. “Para além disso”, acrescentei, “muitos desses negros eventualmente não serão estrangeiros mas portugueses das ex-colónias”. Descansou então o alemão que explicou: “Pois, mas quando eu falava de portugueses era de portugueses mesmo, não desses…”
Note-se que este companheiro de viagem era um engenheiro de petróleos viajado que conhecia meio mundo, não um local paroquial, um votante social-democrata, não um militante da extrema-direita. Mas era também alguém socializado numa ideia de nação que o impedia de atribuir o mesmo sentido à nacionalidade herdada (valorizada) e à nacionalidade adquirida (desvalorizada). Compreendi de um modo novo nessa noite o sentido da distinção entre nação como “comunidade de sangue” e nação como “comunidade territorial” (e os regimes de direito de nacionalidade que lhe estão associados, respectivamente, o de direito de sangue e o de direito de solo).
Para quem partilha uma concepção de nação como “comunidade de sangue”, são “outros” todos os que não têm uma ascendência biológica comum, todos os que não pertencem à mesma “família”. Quando esta cresce ao ponto de englobar milhões de indivíduos, não resta outra solução para identificar os seus membros senão o recurso a critérios racializados. Regimes da nacionalidade baseados no primado do direito de sangue implicam pois, sempre,a prazo, uma concepção racializada da nação.

3. E assim se resolve o enigma. Cavaco só pode falar em portugueses minoritários num universo de portugueses de todas as origens se, como parece, distinguir entre “portugueses originários” e “outros portugueses”. Racializando a nossa concepção da Nação. Usando o argumento (implícito) da raça contra a nação cosmopolita em que urge transformar Portugal.