Somos todos dinamarqueses
Noticiava o Público de hoje (31/01/2006) a existência de protestos vários, no mundo árabe, e em especial na Palestina, contra a publicação, pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, de uma série de cartoons sobre Maomé, o qual, em algumas imagens, surge associado ao terrorismo islâmico (como numa das aqui reproduzidas, independentemente da minha opinião sobre elas). Esses protestos teriam ganho já dimensão estatal com a retirada do embaixador saudita de Copenhaga e o encerramento da embaixada da Líbia. Estes acontecimentos merecem dois comentários.
1. Em primeiro lugar, é necessário reafirmar que tanto a liberdade de expressão como a liberdade religiosa incluem a liberdade de crítica da religião. Incluem, também, a recusa de interferência dos governos na regulação da opinião publicada. O que os governos da Arábia Saudita e da Líbia fizeram foi, simplesmente, tentar alargar o seu domínio autoritário para fora dos seus países e controlar a opinião pública numa nação democrática. O que não pode ser tolerado: por isso hoje somos, todos, dinamarqueses.
2. Em segundo lugar, é importante esclarecer que não deve ser aceite o argumento do “insulto à religião” (neste caso islâmica). Só faz sentido falar em insulto quando dirigido a indivíduos concretos, não a ideias. Além do que insulto não é o mesmo que ridicularização de uma ideia de outrem, mesmo que esse outrem sacralize essa ideia. No dia em que categorias como a do “insulto” puderem ter um âmbito tão alargado, abriríamos caminho ao mais abjecto totalitarismo.
Este entendimento alargado do âmbito do “insulto” constitui, aliás, uma das manifestações de uma orientação comum profundamente iliberal: aquela que diz que “devemos respeitar as ideias dos outros, mesmo que com elas não concordemos”. Orientação que, curiosamente (ou talvez não), anda com frequência de braço dado com a completa falta de respeito pelas pessoas concretas — e esse respeito, sim, é exigível sem reticências (por isso a inaceitabilidade de, por exemplo, maus-tratos a criminosos condenados). Quanto às ideias divergentes, estas podem e devem, pelo contrário, ser publicamente confrontadas, constituindo o humor, mesmo que desbragado, recurso legítimo nesse confronto.
Pelo menos numa sociedade democrática liberal.