domingo, 12 de fevereiro de 2006

Comunidades

É uma das minhas lutas antigas: tentar explicar que é errado e politicamente perigoso usar o termo “comunidade” sempre que nos queremos referir a alguma população imigrante (ou de origem imigrante). O chamado “caso das caricaturas de Maomé” poderá, talvez, ajudar a clarificar as razões desse erro e desse perigo.

1. Hoje, no Expresso (11/02/2006, página 16), num artigo sobre “Muçulmanos a Norte” Rachid Fathi, presidente da Associação dos Emigrantes Magrebinos de Amizade Luso-Árabe, afirma: “Ficámos chocados mas temos de ter sangue frio e reacções inteligentes. Podemos boicotar produtos dinamarqueses, mas não devemos agredir ninguém. O Islão não nos deixa ser violentos.
Legítimo este discurso? Com certeza. Moderado tendo em conta o contexto em que é proferido? Indiscutivelmente.
Mas é este discurso aceitável? Nem pensar! E nem pensar porque os dinamarqueses, ou a Dinamarca, nada fizeram.

2. O que este discurso revela é uma total incapacidade para distinguir entre um jornal e a nação dos editores e autores desse jornal, bem como entre a responsabilidade de um jornal e a responsabilidade do Estado que governa o país em que esse jornal se publica.
O que este discurso revela é pois uma cultura em que não há espaço para a noção de autonomia individual e de responsabilidade individual. Uma cultura em que, no limite, prevalece a negação do indivíduo e da liberdade individual. Substituídos pela “comunidade” e pela co-responsabilidade de todo o membro dessa comunidade pelos actos de qualquer outro membro.

3. Só que esta negação do indivíduo existe também quando definimos os imigrantes não como conjunto de indivíduos mas, sobretudo, como conjunto de comunidades: a “comunidade cabo-verdiana”, a “comunidade brasileira”, a “comunidade ucraniana”, mas também as “comunidades africanas” ou as “comunidades do Leste”.
Ora, quando recusamos a individualização da condição de imigrante e culturalizamos os requisitos da sua integração, fabricamos não só discriminação — porque não aceitamos o imigrante como indivíduo —, mas também os possíveis coveiros da nossa liberdade — porque quando classificamos todos os outros como comunidades, recebemos de volta a mesma classificação.
Não é aceitável que, depois, nos surpreendamos.

P.S. Tinha prometido que não voltaria a este assunto. Não o devia ter feito (a promessa). E não só por causa das surpreendentes declarações de Vitalino Canas, pondo no mesmo saco não só o que tem graus de gravidade totalmente diferentes como o que, no limite, pode nem ter qualquer relação: “as caricaturas foram apenas um pretexto para um movimento de afrontamento preparado e organizado de forma sistemática e utilizando os modernos meios comunicacionais com mestria” (António Vitorino, DN, 10/02/2006, p. 8). Também porque o rescaldo do incêndio promete ser mais longo do que eu pensava.