As caricaturas contra-atacam
1. No caso das caricaturas do Profeta, o que fundamentalmente punha em causa as liberdades era a exigência de intervenção do Governo da Dinamarca pelos que se sentiam ofendidos pelo jornal. Nesse pedido de intervenção eram os dinamarqueses em geral que estavam sob julgamento sumário, era o colectivo nacional que respondia pelos actos de uns quantos dos seus membros. Manifestava-se, em toda a sua plenitude a incapacidade para distinguir entre indivíduo e Estado, entre responsabilidade individual e responsabilidade colectiva, entre esfera privada e esfera pública. Manifestava-se, em suma, a incapacidade para conceder espaço à liberdade e responsabilidade individuais.
2. Reagindo à reacção crítica de “muita imprensa e opinion makers” à visita do primeiro-ministro a Angola, José Lello conclui: “É preciso bom senso nesta floresta opinativa e, por vezes, nas cortinas de fumo que se pretendem lançar sobre Angola, que só prejudicam desnecessariamente a percepção e as relações entre os dois países. Se Portugal não faz juízos de valor em relação a outros países, porque simplesmente não tem de se intrometer nos assuntos internos de Estados soberanos, por que razão havia de o fazer em relação a Angola?”
Já comentei no Canhoto, em “Critérios”, a ideia peregrina de que opinar sobre o que acontece noutro país é interferência nos assuntos internos desse país. Mas o texto de José Lello no Público de segunda-feira (17/04) vai um pouco mais longe, tratando as opiniões expressas na imprensa como juízos nacionais, ou que pelo menos comprometem Portugal. Como se num país livre as opiniões livres não fossem opiniões individuais. Subscrevendo, provavelmente sem disso se aperceber, o pressuposto dos textos publicados no Jornal de Angola, nos quais toda a crítica assinada publicada num jornal português é encarada como um ataque dos portugueses aos angolanos. Ou o pressuposto dos militantes islâmicos, para quem uma caricatura assinada publicada num jornal privado dinamarquês era o mesmo que um ataque do conjunto dos dinamarqueses ao conjunto do mundo islâmico.
3. Pondo os pontos nos i’s. Uma crítica individual publicada num jornal nacional é isso mesmo: individual, não dos “portugueses”. Uma crítica ao Estado angolano é isso mesmo: ao Estado, não aos “angolanos”. E uma opinião crítica é, também, isso mesmo: uma opinião, não uma interferência. A confusão entre todos estes planos é profundamente iliberal, limitando o espaço da liberdade individual. Ou seja, da liberdade.