segunda-feira, 24 de abril de 2006

O dia em que o futebol morreu


"de todos os treinadores com que trabalhei, o Telê foi o único que jamais pediu para matarmos a jogada, fazermos uma falta, batermos num adversário"
Zico

"o dia em que nós entrarmos em campo para dar pontapé e jogar com violência, nós vamos perder tudo".
Telê Santana

Morreu faz dias Telê Santana. Na verdade, Telê Santana já havia morrido há muito tempo. Numa tarde de 1982, quando o futebol perdeu com a selecção italiana. Telê não foi o treinador "pé-frio", responsável por ter perdido duas vezes o mundial (em 82 e 86). Foi antes o treinador que mostrou um futebol perfeito: Júnior, Leandro, Cerezzo, Sócrates, Falcão, Zico e Éder. Quem viu, viu. Quem não viu, não volta a ver. Não apenas porque sete jogadores assim são irrepetíveis, mas porque depois dos golos do cínico Rossi, ninguém mais arriscará jogar futebol.
Claro que houve o Brasil de 58 com Garrincha, Pélé e Didi (aliás, com os dois primeiros juntos, o Brasil nunca perdeu) e o de 70, com Tostão e ainda Pélé, e depois disso a Argentina com Maradona a jogar sozinho, o Barcelona de Romário, Guardiola, Koeman e Stoichkov e cinco ou seis minutos dos galácticos madrilenos. Tudo isso é verdade. Mas foram momentos isolados, logo a seguir compensados por doses justas de realismo. Em 1982, não foi assim. O cinismo que entregou o futebol da década de oitenta aos italianos esteve suspenso durante umas semanas (o cinismo, as arbitragens e a dopagem ao serviço da Juventus, claro).
Devo, devemos todos, a Telê Santana aquelas horas de futebol no ano de 1982, para as quais olho quando tenho dúvidas se gosto de facto do jogo. Tenho gravada na memória a imagem de um Tardelli efusivo depois de marcar um golo na final contra a Alemanha e tenho também como primeiro desgosto sentido o momento em que a bola vem ter com Paolo Rossi no meio da pequena área no jogo dos 3-2 contra o Brasil. Mas tudo isso é nada comparado com a imagem daquele meio-campo que fazia tudo o que deve ser feito. Não era geometria porque isso tem regras. Era um acaso que afinal obedecia a uma lógica, feita de passes imprevisíveis mas que vistos depois são óbvios. Criatividade e uma forma romântica de chegar à baliza adversária. Revejam os golos do Brasil de então. Não há um único que nasça de uma jogada fortuita. Não há um único que comece apenas no momento da finalização. Todos. Todos são jogadas de golo desde o momento em que se iniciaram, bem atrás no campo.
Há uma frase que de tantas vezes repetida já foi perdendo o seu autor: “o futebol é o regresso semanal à infância”. Pois o Brasil de 1982 é o futebol e a infância. E Telê Santana responsável por essa coincidência.