Fantasmas
Em início de regresso gradual ao Canhoto, um comentário sugerido por duas crónicas do dia, no Público.
1. Eduardo Prado Coelho refere-se a um estudo da MacCann Erickson sobre o que considera ser um tema significativo: “a quem é que uma comunidade se sente pertencer?” Note-se que como as comunidades são conjuntos de pessoas definidas pela semelhança das suas pertenças e representações, a pergunta é sobre “a quem é que pertence a pertença comunitária”. Assim colocada, a pergunta fica um pouco circular e a pertença comunitária algo fantasmagórica, mas adiante…
No resto do texto somos confrontados com um conjunto de exemplos sobre a homogeneização de consumos, estilos de vida e gostos entre os jovens, tudo sinais ditos de desenraizamentos definidos como problemáticos. Nada de novo. Sempre que o tema da homogeneização na globalização é tratado, directa ou indirectamente, os exemplos são centrados no que se convencionou chamar “cultura de massas”. De parte ficam os processos de homogeneização por universalização do gosto erudito e dos estilos de vida da elite: ou alguém ouviu já referências críticas à universalização do gosto pela música clássica de origem alemã, do consumo do vinho tinto produzido à francesa ou do uso do fato e gravata inventado pelos ingleses? Não, os problemas da homogeneização são sempre situados no campo dos consumos da música ligeira, dos hambúrgueres ou das calças de ganga. Ou seja, a globalização é má quando é jovem e popular, mas nem globalização é quando é erudita e elitista: fala-se, então, de “elite cosmopolita”.
2. Na mesma página, outro fantasma, o do país (ou da sociedade), por via da metáfora presente no título da crónica de Mário Pinto: “O caso dos exames, espelho do país”. Sendo retórica banal, merece, por isso mesmo, um curto comentário.
Imaginemos que um dia, em zapping televisivo, passamos por vários canais onde se realizam debates sobre o tema da violência: no canal A debate-se a violência na família, no B a violência na escola, no C a violência nas ruas, … Em todos, a mesma explicação: a violência na família é o reflexo da violência na sociedade, a violência na escola é o reflexo da violência na sociedade, a violência nas ruas é o reflexo da violência na sociedade, … Há, porém, um problema com este modelo de explicação: se à sociedade retirarmos os espaços em que é dito que ela se reflecte (a família, a escola, as ruas…), ficamos com um fantasma, pois a aquilo que chamamos sociedade não é ente sobrenatural (embora com Mário Pinto…) mas um conjunto durável e ordenado de subconjuntos de relações sociais mais ou menos especializadas, como os que designamos por família, escola ou ruas. Por outras palavras, ficamos não com uma explicação do eventual problema mas com um álibi para não o explicar parecendo que o fazemos. Como se vê, aliás, pelo texto em causa de Mário Pinto.