segunda-feira, 6 de novembro de 2006

A luta contra a corrupção e as costas largas das funções sociais do Estado

Antigamente era só Paulo Portas que tentava arrancar palmas por tudo e por nada à conta de zurzir as funções sociais do Estado. Aparentemente, no entanto, a moda pegou.
Maria José Morgado foi ao Congresso do Partido da Nova Democracia falar sobre corrupção e terá dito, segundo o DN, que a direita é mais sensível à corrupção que "a esquerda, que tem uma dependência crónica do aparelho do Estado e das suas funções sociais".
Mesmo que concedessemos na tese da dependência da esquerda em relação ao aparelho de Estado e de que essa dependência estivesse na origem de uma hipotética desvalorização do problema pela esquerda, cenários que careceriam de confirmação, alguém acredita que o problema da corrupção em Portugal se liga privilegiadamente com o suborno de doentes a médicos, de pais a professores, de pensionistas a funcionários da segurança social?
Se há coisa que é improvável é que os beneficiários do rendimento social de inserção se encontrem quer entre os maiores corruptores quer entre os maiores corrompidos.
Atendendo ao contexto em que Maria José Morgado falava, é natural que tenha pretendido fazer um cumprimento à direita, mas podia ter chegado lá de forma mais feliz.

A corrupção é um assunto sério e tem que ser enfrentada com determinação, mas preocupa-me que sob arremetidas populistas e soundbytes deste tipo, acabe por se transformar numa nova caça ao "caso exemplar" que, como no tempo dos pogroms, apaziguará as consciências e após um pequeno intervalo deixará tudo na mesma.
Ao contrário de Maria José Morgado, acho que a relação forte da esquerda com o Estado reforça nesta o sentido da vigilância contra o desvirtuamento da sua função e do seu papel. O que implica, ao contrário do corolário típico da direita liberal, extraído por Maria José Morgado, que a esquerda tenha uma concepção exigente da luta contra a corrupção.
Pr outro lado, é preciso nunca esquecer que a corrupção ocorre em torno de relações de poder. É provável que seja na promiscuidade entre Estado e negócios, que tem a ver com as funções económicas do Estado, ou na tentativa de usar de posições de vantagem, que tanto tem a ver com estas como com as funções de soberania, que a corrupção seja mais séria e de maior dimensão. Tudo tão afastado das funções sociais...

Adenda. O Adolfo Mesquita Nunes, reportando-se a este texto, insiste na tese da superioridade da direita liberal no combate à corrupção e fá-lo com base na atitude face ao Estado. Devo dizer-lhe que, se existe esquerda que tenha perante o Estado a atitude que lhe atribui, não lhe pertenço, como julgo que resulta do que escrevi, mas isso é secundário para o que se está a discutir.
Como já tinha escrito na caixa de comentários em resposta a um comentário seu, antes de ter visto o que escreveu no post, há um ponto que partilho com os liberais na discussão sobre o combate à corrupção. É a vontade de circunscrever as situações de abuso e a defesa radical da existência de regras claras, conhecidas, transparentes e de que haja mecanismos para as fazer cumprir que melhor nos protege da corrupção. Ou seja quanto melhor funcionar o Estado de direito democrático menor será o risco de corrupção.
Por isso não vejo onde possa encontrar-se uma clivagem séria direita-esquerda sobre o assunto. Esta batalha é comum aos defensores do Estado de direito democrático à direita e à esquerda, contra, de ambos os lados, os que o desvalorizam e tendem a considerar meramente formal ou, até, instrumental.