quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Causas e escolhas

1.
À medida que se aproxima a data do referendo, é normal que se multipliquem (e se radicalizem) os discursos e que comece a ser difícil encontrar argumentos que não repitam outros já apresentados - algo a que podemos chamar o ponto de saturação do debate. Mas é importante não perder de vista o essencial.

Ninguém questiona que temos um problema. A actual lei tem mais de vinte anos. O primeiro referendo foi há quase dez. O que mudou na situação do aborto clandestino em Portugal? Não sabemos ao certo, mas sabemos uma coisa: para melhor, nada mudou.

2.
Os movimentos e decisores políticos que se opuseram à despenalização não foram capazes de resolver o drama do aborto clandestino e os graves problemas de saúde pública a ele associados; nem de o substituír por aquilo que consideravam "alternativas" (aconselhamento, apoio às mulheres).
Mas não foram capazes por uma razão muito simples: porque a escolha entre despenalizar a interrupção da gravidez e a aposta em políticas de planeamento, aconselhamento e apoio é uma falsa alternativa. Pelo contrário: a clandestinidade da opção de interromper a gravidez desencoraja o recurso a aconselhamento por quem precisa de ajuda. Ao contrário do que teimam os "defensores da vida", a proibição não diminui o número de IVG's realizadas; muito provavelmente só despenalizar a IVG vai fazer com que diminua o seu número.

3.
E não nos enganemos. Mesmo essa diminuição, a existir, será parcial. O aborto nunca vai deixar de existir, dentro ou fora da lei. Podemos desejar a sua erradicação, mas a realidade é outra: a mulher que quiser recorrer a ele, provavelmente vai encontrar meios do fazer. O que está em causa, quer gostemos ou não, são outras coisas.
A questão é saber se o faz com acompanhamento, com possibilidade de ser realmente aconselhada, em condições de saúde aceitáveis, e caso cumpra os requisitos legalmente definidos para ter essa possibilidade.
A questão é se vamos finalmente lidar com as mulheres que querem pôr termo à gravidez com recurso a médicos, psicólogos e outros profissionais, com transparência, com informação. Ou se vamos continuar a deixar tudo como está: a humilhar as mulheres, a condená-las à clandestinidade (ou pior, ao julgamento), a deixar que prolifere o aborto selvagem, a deixar que seja um caso de polícia e de tribunais.
A questão é se queremos agir para que diminua fortemente o negócio escuro dos abortos clandestinos, sem controle, sem saúde, sem informação às pessoas (e impedindo que se conheçam os números reais sobre a situação em Portugal). (E, não o esqueçamos, ao acabar com o grosso da procura do verdadeiro mercado que existe em torno do aborto ilegal , diminuirão as possibilidades de interromper a gravidez fora das condições previstas na lei)
A questão é se queremos avançar para uma lei moderada, mais próxima do que se faz nos países mais desenvolvidos e civilizados do mundo, ou continuar tristemente alinhados com o que de mais atrasado e atávico há na periferia da Europa.

4.
Por muito que custe a algumas pessoas, proibir na lei e penalizar as mulheres não produz melhoria alguma, nem sequer na "defesa da vida". Pelo contrário, só fomenta o aborto completamente selvagem e sem controle algum, só cria problemas e perversidades que não são ultrapassáveis no actual quadro legal.

Por isso, a escolha que há a fazer é, no fundo, só uma. É entre deixar tudo como está, sem resolver problema algum enquanto assobiamos para o lado a fingir que nada se passa; ou avançar para uma nova lei, mais equilibrada, mais adequada. Uma nova lei que crie condições para diminuir drasticamente o drama do aborto clandestino e proporcione às pessoas melhores condições de aconselhamento e de opção.