Rigor em saldo
No DN de domingo (18/02/07), Isabel Lucas assina uma reportagem que intitula “Doutores em saldo” . A ideia-chave da reportagem é assim resumida: “Marco, Paula, Margarida Inês e Bruno têm entre 23 e 30 anos, têm uma licenciatura, têm um emprego, mas nenhum dos cinco exerce a função para a qual recebeu formação.”
1. O primeiro equívoco deste tipo de textos reside na relação formação-profissão. Quase nenhuma formação superior, sobretudo se universitária, é profissionalizante, no sentido estrito do termo. Talvez medicina seja a única excepção a esta regra. Todas as outras são formações que permitem o desempenho de várias profissões ou actividades. Por exemplo, a formação em História Moderna e Contemporânea (um dos exemplos da reportagem) permite o desempenho não da “profissão” de “historiador especializado na era moderna e contemporânea” (!!) mas as mais diversas profissões em que o conhecimento em História Moderna e Contemporânea pode ser útil: jornalismo, edição, turismo, ensino, animação sociocultural e, até, ... investigação em história. No caso concreto da reportagem, o jovem em causa, licenciado em História Moderna e Contemporânea, trabalha em câmbios. A relação é mínima? Pois é, e depois? Era preferível que tivesse estudado menos? E que conclusão se pode tirar sobre a inserção profissional de um licenciado com 27 anos?
2. Noutros casos retratados na reportagem, não se percebe sequer o fundamento da tese da desadequação entre formação e profissionalização. Que desfasamento existe entre o trabalho numa editora, de livros, e a formação em jornalismo? Ou entre uma formação em ciências da comunicação e o trabalho numa livraria? E mesmo quando existe algum desfasamento é algum drama? O sociólogo que queria estudar comunicação mas acabou em sociologia e hoje trabalha como vendedor lá confessa que, mesmo nessa actividade tem “a vantagem de ter mais habilitações. Afinal, sempre tenho uma licenciatura e isso pode ajudar na progressão.” Entretanto, decidiu que precisava de mais (e não de menos) estudos e frequenta um mestrado em comunicação, para assim melhorar as suas possibilidades de obtenção de emprego na área da comunicação. Até porque tem tempo, pois só tem 23 anos. Como a licenciada em Ciências da Comunicação, que, tendo descoberto o gosto pela tradução, afirma que “se pudesse, fazia uma pós-graduação em Letras e um curso de espanhol”. Mais formação, não menos, agora mais específica, depois de uma experiência no mercado de trabalho.
3. A pérola da reportagem é porém a frase “sentem-se rejeitados por um mercado que não os aceita como trabalhadores, mas que os aliciou com o eldorado que poderia representar uma licenciatura.” O “mercado aliciou” quem e como? Significa o quê esta frase vazia? Deixando de lado a retórica, pouco profissional num texto jornalístico, talvez a autora esteja simplesmente a querer dizer que aqueles jovens pensavam que teriam mais e melhores oportunidades profissionais com uma licenciatura do que sem ela. Pois se o pensavam, pensavam bem, como as estatísticas demonstram facilmente: em média, um licenciado tem mais e melhores oportunidades profissionais do que quem tem apenas o secundário ou o básico. Oportunidades, mas não garantias.
4. A reportagem insiste, porém, no carácter precário e mal remunerado dos trabalhos desempenhados pelos jovens entrevistados. Curiosamente, não intitula “mercado de trabalho em crise”! Pelo contrário, arruma o problema no lado da formação. Está certo, deve obedecer a uma lógica que eu domino mal...