Trocar de povo
José Manuel Fernandes (JMF) descobriu que a política é impotente: “mesmo se todas as políticas fossem as correctas, nenhum iluminado, nenhum ‘novo Marquês’, mudaria o país por decreto. O problema reside, como sempre, nos portugueses e na sua cultura de dependência e mão estendida, de fé no desenrasca e de preguiça face ao trabalho árduo e rigoroso”.
1. Claro que esta afirmação retórica impossível de provar (ou de contraditar), que nada explica, tem um problema: atinge JMF. Pois se este é português e “os portugueses”, sem mais, são o que deles JMF diz, por que seria JMF diferente? Resposta possível: porque não são bem todos os portugueses, mas a maioria (medida como?). Aceitemos a resposta e façamos nova pergunta: o quer explica a existência de “portugueses” problema e “portugueses” não problema (tipo JMF). Nova resposta possível: porque há portugueses que foram educados de um modo e portugueses que foram educados de outro modo (à JMF). E nova pergunta: o que explica a existência de diferentes modos de educação com diferentes resultados? … E por aí adiante, acabando qualquer um por concluir que há muitas variáveis em jogo que permitem explicar por que razão há tantas culturas diferentes em Portugal como noutros países (facto aliás só invisível aos olhos de quem tem da sociedade uma visão totalmente holista)… e acabando também por concluir que a explicação inicial não era explicação de todo.
2. Não propondo JMF uma explicação mas uma culpabilização retórica (tudo funciona mal porque os portugueses são do piorio), apetece responder também no plano retórico e lembrar Brecht quando este dizia que se não é possível trocar o governo, que ao menos se troque de povo. Deve ser este o sonho de JMF: encontrar um povo que o mereça, que este é demasiado pedinte e preguiçoso! (“Povo de pedintes e preguiçosos”. Olha, olha, onde já li eu este tipo de afirmações?)
3. Claro que JMF poderá acusar-me de alguma batota, pois não cito a parte final do seu texto. Dado o povo que temos, argumenta JMF, “o Governo só pode actuar pelo exemplo. Ora no que a tal toca…”. Ou seja, JMF propõe-nos que ressuscitemos o pior do eanismo e voltemos a definir a liderança política como liderança moral e a acção política como acção moral exemplar. Confesso que depois do holismo dos “portugueses”, de circunstância, e do elitismo do “povo de pedintes e preguiçosos”, de convicção, só faltava mesmo o populismo moral para encher o caldeirão da demagogia.