“Nós”…
…é, no discurso comum como no erudito, um dos termos mais equívocos que conheço. Especialmente quando o discurso envolve uma qualquer referência de tipo nacional, tende a haver um excesso de “nós”. Por exemplo, quando Vasco Pulido Valente, no Público de domingo, 18 de Maio, afirma: “se descobrimos o caminho marítimo para a Índia, foi precisamente porque não descobrimos o caminho para o desenvolvimento”. O problema com esta frase, que parece identificar lapidarmente, ainda que metaforicamente, as raízes do atraso português, é que, de facto, nada explica.
Comecemos pelo “nós”: “nós descobrimos o caminho marítimo para a Índia”. Desculpem o terra-a-terra, mas não conheço ninguém vivo ou recentemente falecido que tenha participado nas acções que levaram Vasco da Gama à Índia. Assim sendo, quem é esse “nós” que foi de barco até à Índia? Resposta simples: ninguém real, pelo que parte da frase apenas tem valor retórico. “Eles”, e convém precisar que este “eles” não inclui os portugueses em geral, seja de que época for, descobriram o caminho marítimo para a Índia. E se o “nós” dos tempos de Gama não é mais do que figura de retórica, o “nós” de hoje também anda lá perto. De facto, existem na sociedade portuguesa muitos e variados “nós”, mas o que não existe de certeza é um “nós” que reúna todos os portugueses.
A objecção óbvia a estes banais comentários anti reificação da nação, consiste em considerá-los irrelevantes se o argumento for sustentável, apesar do reforço retórico. O argumento, porém, não é sustentável: por que razão o colonialismo estaria na origem do atraso nacional mas não do atraso de ingleses ou holandeses? Porque a explicação aparentemente simples de Vasco Pulido Valente é demasiado simplista para fazer qualquer sentido. Em rigor, o que o cronista faz não é mais do que traduzir para linguagem um pouco mais erudita enunciados do senso comum mais banal do tipo “a adversidade forma o carácter”…