quinta-feira, 27 de abril de 2006

Democracia e capitalismo

Num dos seus artigos de opinião publicados no JN, Paquete de Oliveira assinalava o perigoso desenvolvimento de um mal-estar social nas democracias europeias. Perigoso porque poderá virar-se contra a própria democracia.

1. Se estou de acordo com o diagnóstico feito por Paquete de Oliveira, já discordo de algumas das explicações por ele avançadas para esse mal-estar. Discordo, em primeiro lugar, que se possa diminuir o valor das democracias afirmando que estas “a todos ainda só conseguiram dar o direito de votar”. Em rigor, as democracias nada deram ou dão a ninguém, pois não são entidades mas sistemas políticos que entre as suas características incluem modos de deliberação por meio de votações. Como a história ainda recente de Portugal ilustra, esta não é característica menor; e vale por si só. Mas discordo, sobretudo, que se queira relacionar a persistência, e até mesmo o agravamento, das desigualdades materiais com o carácter “menos” democrático das sociedades europeias. O carácter capitalista do nosso regime socioeconómico, não o seu carácter democrático, é que está na origem dessa persistência ou agravamento.

2. O capitalismo é o melhor regime que, do ponto de vista do desenvolvimento económico, foi até hoje inventado. Mas nele a desigualdade é endémica. Se politicamente não forem definidos e aplicados limites a essa desigualdade, e compensados os seus efeitos mais negativos, o mal-estar social referido por Paquete de Oliveira poderá agravar-se e facilitar derivas antidemocráticas. O problema não está pois na necessidade de mais democracia mas de mais e melhor regulação do capitalismo, promovendo mais igualdade. Como foi conseguido durante muitas décadas com a invenção do estado-providência. O qual foi, convirá lembrá-lo, perfeitamente compatível com o desenvolvimento económico capitalista e durante muito mais tempo do que “os 30 gloriosos anos de crescimento económico (1945-73)” referidos pelo Filipe. Compatibilidade que teve com o crescimento uma relação mais complexa do que a que está implícita naquela citação: o estado-providência não foi possível apenas quando houve crescimento, foi mesmo em certas conjunturas a resposta à depressão e o indutor do crescimento. Ou seja, o estado-providência não é necessariamente o “luxo” tornado possível pelo crescimento. Saber por que aquela compatibilidade não é já hoje possível nos moldes em que o foi no passado, e inventar novas formas para conseguir o mesmo resultado, é o que, para a esquerda, está agora em jogo.

3. O estado-providência não está morto, e está por demonstrar que, no contexto da globalização contemporânea, não seja reformável. O facto de ter “efeitos perversos”, como é destacado pelo Filipe, significa sobretudo que, nessa reforma, tais efeitos devem ser tomados em conta para serem limitados. Todos os regimes sociais, todas as instituições até hoje inventadas têm “efeitos perversos”, que podem ser minimizados mas nunca totalmente anulados. O estado-providência como o mercado. E conviria não esquecer que há mais do que uma variante do que chamamos estado-providência, não tendo todas essas variantes os mesmos efeitos perversos e os mesmos problemas e bloqueios. Por exemplo, o problema da sustentabilidade da segurança social é muito mais agudo nos regimes continentais do que nos nórdicos.

4. É no contexto dos debates sobre os caminhos possíveis e variáveis dessas reformas que, no Canhoto, o António e o Paulo têm, por exemplo, discutido os novos regimes da “flexigurança”. Outras mudanças possíveis noutros pilares do estado-providência devem ser discutidos em Portugal tendo em conta os debates internacionais (como os que, por exemplo, são regularmente animados pelo policy network), e neles participando, se o queremos reformar em vez de o deixar “findar”. Reformá-lo passa porém por inventar novas políticas sociais generativas, não por substituir o “velho” estado social pelo ainda mais “velho” estado assistencialista.