sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Resposta a alguns críticos: o efeito de realidade

1. Pode compreender-se - e eu acho que compreendo! - que os que são alvo das medidas governamentais que afectam negativamente os seus estatutos profissionais protestem e façam o que está ao seu alcance para anular ou minimizar os efeitos dessas medidas ou, quando não conseguem nem uma coisa nem outra, para tentar aumentar os custos políticos dessas medidas, isto é, para tentar fazer alterar o sentido do voto dos atingidos pelas medidas em questão.
2. Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que o "Consenso de Washington" desconsidere os direitos sociais e que, depois de George W. Bush ter chegado à Casa Branca, este esteja a ser interpretado em articulação com uma "doutrina de segurança" que junta as guerras preventivas à travagem da maior parte das tentativas feitas até agora de regular de modo mais responsável e mais justo a dimensão social da globalização.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que o Banco Mundial avalie as relações laborais dos diferentes países com critérios que fazem de cada direito social um custo, que se transforma, ele mesmo, num desincentivo ao investimento directo estrangeiro.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que a construção europeia tenha seguido um caminho em que a disciplina orçamental é obrigatória, enquanto o crescimento económico é remetido para o campo dos possíveis e o desenvolvimento social se transforma na principal variável de ajustamento.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que, em vários dos novos Estados membros da União Europeia, a política fiscal se baseie na flat rate e que a competição, fiscal e social, pelo investimento directo estrangeiro se tenha tornado um dos critérios de decisão governamental.
Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que o Estado de direito seja tão débil e socialmente desigual na aplicação da lei.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que Portugal seja, no quadro da UE, o país de maior índice de desigualdade salarial.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que a discussão sobre a desigualdade social esteja demasiado centrada nas desigualdades entre trabalhadores e quase não se refira às desigualdades no conjunto da sociedade.Pode gostar-se ou não - eu não gosto! - que as diferenças entre os regimes de direitos sociais da generalidade dos trabalhadores dos sectores privados e dos trabalhadores da administração pública sejam demasiado diferentes e favoráveis aos funcionários públicos.Pode gostar-se ou não - e eu não gosto! - que, mesmo num país de baixa qualificação, de baixos salários e de alta desigualdade salarial, como é Portugal, os custos salariais de alguns grupos - os professores do ensino público básico e secundário, por exemplo - sendo baixos em termos absolutos, sejam altos comparativamente com os dos seus colegas do sector privado e os da generalidade dos portugueses.
3. Mas nada disto altera o facto de que, enquanto não se conseguirem mudar os constrangimentos internacionais e europeus hoje existentes, as políticas domésticas estão sujeitas a constrangimentos que limitam as possibilidades de escolha e de acção política dos governos, designadamente porque as possibilidades de mobilidade do capital são cada vez maiores, ao contrário do que se passa com muitos segmentos do trabalho.
4. Foi por estas razões que, quando aqui me interroguei sobre o modo de interpretar a "rua" e sobre as motivações políticas dos que organizam essas manifestações, exprimi uma preferência política, que continua ser a minha: quando não é possível, simultaneamente, promover o emprego e reduzir a exploração, deve preferir-se a primeira à segunda. Por isso, expressei a minha concordância com a generalidade do que António Chora disse à última "Pública".
5. Os problemas não são, portanto, nem os manifestantes ou os grevistas exercerem direitos cuja restrição é sempre uma limitação grave das liberdades, nem o de haver organizações sociais e partidos políticos que tentam capitalizar o descontentamento.
6. O problema está, em minha opinião, no facto de que, se não for possível prosseguir uma estratégia reformista que actualize os direitos e os deveres sociais, que fomente o emprego e que organize a equidade social, o efeito mais provável é, a prazo, o aumento do espaço de manobra das receitas políticas que prometem a redução dos impostos como pretensa compensação da redução drástica da despesa pública com as políticas sociais. Nesse contexto, tudo será bem mais difícil para os que querem a equidade social e a redução das desigualdades no centro da agenda política. E é por isso que a carta do professor sueco que o Filipe aqui "postou" é interessante.
7. O meu ponto não consiste em considerar que nada precisa de correcção nas políticas públicas do actual Governo. O meu ponto é que me parece que os que as contestam em nome dos valores da esquerda serão tanto mais lúcidos quanto não esquecerem que os debates dentro das esquerdas não podem ignorar as estratégias em curso das direitas e tanto mais prometedores quanto a contestação às políticas governamentais incluir a proposta de alternativas viáveis no contexto internacional e europeu que realmente existe.