quarta-feira, 1 de julho de 2020

Canhoto, de novo

O Rui Pena Pires e eu decidimos voltar ao Canhoto. Para as visitas menos antigas digo que esse foi o blogue que ele fundou em maio de 2005 e a que desde o início associou o António Dornelas e eu próprio.

O António não poderá infelizmente escrever connosco neste regresso, mas as muitas coisas que unem a nossa vontade de pensar e dizer o que pensamos continuam a ter esse elo comum.
Encontramo-nos lá?

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Adeus António


Esta tarde ainda estava na porta do gabinete que partilhamos no ISCTE o aviso aos teus alunos de que por motivo de  força maior não os poderias receber à hora combinada. Quando entrei pensei que haverias de ser tu a atirar esse papel para o lixo. Mas, quando saí, já sabia que não o farias, embora ainda tenha que ganhar coragem para o fazer eu.
Fomos colegas enquanto estudantes. Nessa altura já eras um especialista do mundo do trabalho e eu ia apenas ser um sociólogo. Fomo-nos cruzando, sempre trilhando percursos próximos e sempre o fazendo pelas vias autónomas de quem pertencia a diferentes gerações, tinha percorrido na vida diferentes caminhos e partilhava, antes do mais e mais que tudo, uma visão do mundo desejável.
Talvez nos tenhamos tornado amigos quando zelávamos ambos na sombra - como devem fazer os assessores - pelo bom relacionamento em questões sociais entre o Governo de António Guterres e a Casa Civil do Presidente da República Jorge Sampaio. Conversávamos muito, então. Aliás, nunca mais deixámos de o fazer.
No dia em que fui convidado para Ministro era óbvio que terias que ir fazer comigo o que fosse possível  daquilo que tínhamos pensado juntos sobre as transformações necessárias no mundo do trabalho. Resististe, mas reconheceste que não podias recusar participar do esforço de pôr em prática o que pensavas.
As nossas vidas levaram muitas voltas desde então. Felizmente, após um pequeno interregno,  tu pudeste retomar no Governo de José Sócrates e com um papel diferente do que tinhas antes, a batalha necessária pela modernização das relações laborais. Nem sempre as tuas posições venceram e nem sempre estive de acordo com as que defendeste. Mas nunca deixámos de as discutir. E, nunca nenhum de nós pôs em causa que as causas sociais da esquerda portuguesa se prendem com o que está por fazer e não com a defesa do que está feito e tão imperfeito é.
Se as tuas ideias tivessem sido mais ouvidas, teríamos hoje um mundo do trabalho mais justo, um sindicalismo mais forte, uma protecção social mais equitativa e uma sociedade melhor. Mas, como várias vezes conversámos, para que tal fosse possível era necessária uma coligação pela mudança que não se  conseguiu ainda reunir.
Nunca mais poderei voltar a agradecer-te a confiança inabalável e a solidariedade activa que me deste, quando te teria sido mais confortável ser discreto senão silencioso. Mas, o teu carácter nunca te deixaria afastar da verdade por uma conveniência, calar a reivindicação de justiça porque outros a calam ou falhar uma responsabilidade por capitulação à relação de forças.
Já não vou poder ir ao teu doutoramento, que as imperfeições da natureza e os avanços insuficientes da medicina te impediram de concluir.
Hoje o socialismo democrático português perdeu um discreto mas sólido pensador do seu modelo social, tu foste impedido de acabar os teus projectos e eu perdi um amigo ("e coisa mais preciosa no mundo não há", como canta o Sérgio Godinho).
Amanhã vou rasgar por ti o papel que está na nossa porta. Toda a gente sabes que só falhaste compromissos na vida por motivos de força maior. E ficamos a dever um ao outro, para sempre, a última conversa. Ambos sabemos que não há novo encontro. Adeus António.


(publicado também no Banco Corrido)

sábado, 26 de março de 2011

Futre no CRUP

Não é justo crucificar Paulo Futre por causa do sonho chinês. Compare-se com o exemplo dos reitores portugueses: um honoris causa em pacote concedido ao Reitor da Universidade de Macau.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

As regras do jogo

1. Uma eleição não é um conjunto de referendos. Quando se exprime eleitoralmente a preferência por um partido não se referenda o programa desse partido. Dizer pois, como o faz Tiago Mota Saraiva, no 5 Dias, que a maioria dos eleitores votou contra o programa eleitoral do PS revela pouca compreensão das regras do jogo democrático.

2. Mais, quando se quer retirar de uma votação conclusões sobre assuntos que não foram a votos, como o faz Tiago Mota Saraiva, abusa-se do mandato dos eleitores. E assim se desliza, invocando em vão os valores da democracia, para uma posição antidemocrática.

3. Em resumo, é preciso respeitar, à letra, as regras do jogo democrático. Não por excesso de formalismo, mas porque essas regras constituem a própria substância da democracia.

Abuso de posição dominante

Em França, segundo a Alternatives Économiques, o Estado processou, nos tribunais, nove empresas da grande distribuição por práticas de abuso de posição dominante em relação aos seus fornecedores.

1. A possibilidade de abuso de posição dominante constitui o poder económico em poder oligárquico e impede a desejável democratização dos mercados. Em consequência, dificulta-se o aparecimento de novas empresas bem como o desenvolvimento das médias empresas já instaladas, reduzindo-se quer a concorrência entre empresas quer a mobilidade nos mercados. Por outras palavras, reduzem-se severamente os benefícios do mercado, nomeadamente nos planos da inovação e do crescimento.

2. Em Portugal, o abuso de posição dominante é prática corrente. Como é prática corrente a demissão do Estado no combate a essa prática. Ora, sem intervenção pública é impossível contrariar o abuso, pois esse só é possível pelos diferenciais de poder em confronto e, portanto, pela vulnerabilidade das pequenas e médias empresas à chantagem das grandes, independentemente da lei. Entre o fraco e o forte só a interposição do Estado pode reequilibrar a relação de forças e repor as condições de funcionamento democrático dos mercados.

3. Esperam-se, com alguma impaciência, notícias de Portugal convergentes com as que nos chegam de França.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Sustentabilidade da retoma

Para garantir a sustentabilidade da anunciada retoma é preciso que algo mude mesmo. Antes de mais, é preciso garantir que o desenvolvimento perverso do sistema financeiro, nas últimas décadas, seja radicalmente invertido.

1. Esse desenvolvimento perverso teve entre as suas componentes mais importantes uma complexificação descontrolada. Como se sabe, a possibilidade de desenvolvimento controlado da complexidade requer simplificação no plano operativo, por especialização, e complexificação dos processos de regulação das partes especializadas. No mundo da finança tudo se passou ao contrário.

2. No plano operativo, complexificaram-se os produtos financeiros e aboliram-se grande parte das fronteiras que especializavam os diferentes actores, organizações e actividades que compunham o sector financeiro da economia. A complexificação dos produtos introduziu opacidade no funcionamento dos mercados financeiros e dificultou o controlo dos seus resultados. A indiferenciação de actores, organizações e actividades incrementou exponencialmente o risco sistémico, tanto em termos extensivos como intensivos, e dificultou o controlo do seu funcionamento.

3. Ora, quando se exigia mais regulação, por serem maiores as dificuldades de monitorização dos mercados, os principais decisores políticos optaram por limitar, simplificar e dispensar boa parte da regulação financeira construída no pós-guerra. Simplificação da regulação combinada com complexificação da operação dos mercados financeiros teve o resultado que se conhece.

4. Hoje, a sustentabilidade das respostas à crise exige um caminho inverso assente em dois princípios fundamentais: re-especialização das actividades financeiras e desenvolvimento dos instrumentos e normativos da sua regulação. Se nada for feito nestes dois domínios, não apenas num deles, até já crise.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Como destruir a democracia

1. Entre outros meios, com a generalização da corrupção, como se sabe.

2. Mas também com a denúncia demagógica de que “o regime se tornou numa enorme rede de corrupção” e a imputação da exclusividade da coisa aos partidos. À Vasco Pulido Valente (VPV), portanto.

3. Com aquele toque de insuportável snobismo de classe a que nos habituou, VPV retrata no Público o que chama “a carreira de um corrupto”. Que começaria tipicamente, afirma VPV, pela inscrição num partido (PS ou PSD). Afirmação que carece de prova, prática substituída nos escritos de VPV pela repetição da mesma acusação tantas vezes quantas as necessárias para a sua naturalização.

4. Quando o assunto em causa é o da corrupção, uma das mais irritantes práticas a que nos habituou o ambiente mediático em que vivemos foi a da estigmatização dos partidos como álibi para todos os restantes actores com intervenção na esfera política. A começar pelos média. Outra prática irritante é a sistemática suspeita de que a mobilidade social estará ligada à corrupção, crime de que estariam magicamente afastados os bafejados pela lotaria social do nascimento. Também com dispensa de prova, jogando-se agora com o preconceito e a inveja como mecanismos de naturalização da suspeita.

5. A permanente manifestação pública de nojo pelos partidos e a sistemática caracterização destes como máquinas de corrupção ameaçam de morte a democracia, pois afastam os cidadãos da prática institucionalizada da política. E fazem, assim, de VPV um inimigo declarado da democracia.

domingo, 1 de novembro de 2009

Défices de fair play e de factualidade

Segundo Carvalho da Silva, no Público (ainda com José Manuel Fernandes), a presença de Valter Lemos no Emprego é um sinal “absolutamente desastroso” do Governo.

1. Carvalho da Silva tem um pequeno problema com as regras do jogo democrático e com o fair play institucional. Compete ao primeiro-ministro, não ao secretário-geral da CGTP, a selecção e a nomeação dos membros do seu Governo, com os seus critérios, não os do secretário-geral da CGTP, entre pessoas da sua confiança política, não da confiança política do secretário-geral da CGTP. O que acharia Carvalho da Silva de intervenções do primeiro-ministro, o actual ou qualquer outro, a propósito de escolhas da CGTP para os seus órgãos de direcção?

2. Carvalho da Silva tem também um pequeno problema com os factos. Segundo ele, “Valter Lemos foi a referência mais forte da conflitualidade com os professores” no anterior Governo. Ora, enquanto secretário de Estado da Educação, Valter Lemos foi responsável pela colocação (a tempo e horas) dos professores, pela reorganização da rede escolar ou ainda pelo Programa Novas Oportunidades (em colaboração com o Ministério do Trabalho). Não teve, porém, o pelouro da negociação com os sindicatos dos professores. Este era de Jorge Pedreira, a quem coube, até por isso, a gestão dos processos de revisão da carreira docente e da avaliação (para além do dossiê dos manuais escolares). Basta consultar a delegação de competências de então.

3. Ou seja, Carvalho da Silva repete uma das últimas intervenções de José Manuel Fernandes, em que este, com aquele rigor factual que o tornou uma referência no jornalismo português, criticava a escolha de Valter Lemos para o Emprego e a Formação Profissional por este ser, entre outras coisas, o autor das tão contestadas fichas da avaliação. Adaptando a canção, “afinal havia outro…”. Substituir os factos pelo preconceito não resulta nem em bom jornalismo nem em intervenção política recomendável.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Transparência made in USA

1. Quando o que está em causa é o acesso à informação necessária para o escrutínio dos mercados, a Europa ainda tem muito para aprender com os EUA. E este é um dos requisitos-chave de qualquer estratégia eficaz de regulação mais democrática dos mercados.

2. No Bruegel, por exemplo, chama-se a atenção para as diferenças entre os relatórios recentemente publicados pelas autoridades de supervisão bancária dos EUA e da UE, sobre a situação dos bancos neste início de retoma. No primeiro caso, o relatório inclui informação sobre cada banco, no segundo apenas informação agregada sobre o conjunto dos bancos.

3. Ora, sem mudanças na supervisão bancária ao nível europeu, que devem incluir exigências de mais transparência na actividade dos principais actores financeiros, ficamos sem garantias sobre a sustentabilidade da retoma. Nomeadamente, a partir do momento em que o sistema bancário ficar sem o air-bag dos apoios públicos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Como reconhecer uma causa corporativa quando se dá com ela

1. Se é verdade que interesse público e interesse profissional não estão necessariamente em conflito, também é verdade que não são necessariamente convergentes. Por isso, quando no discurso dos seus promotores a causa pública num sector não se distingue da causa dos profissionais desse sector, é mais do que provável que estejamos perante uma causa corporativa. Por exemplo, quando na defesa do serviço nacional de saúde os doentes desaparecem atrás de médicos e outros profissionais de saúde, ou quando a afirmação do valor da escola pública pode ser feita ignorando alunos e famílias.

2. No sítio do PCP anuncia-se: “PCP em defesa da Escola da Pública”. Na notícia explica-se: “Numa reunião com a Federação Nacional de Educação (FNE), assim confirmando uma convergência objectiva entre as preocupações dessa estrutura sindical com as iniciativas e posições do PCP. Avaliação de desempenho, horários, estatuto de carreira docente, prova de ingresso, concursos de colocação e municipalização da Educação foram alguns dos temas sobre a mesa e sobre eles, uma vez mais, o PCP reafirmou o seu compromisso de firme combate, em defesa da Escola Pública, Gratuita, Democrática e de Qualidade para todos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Desigualdade patrimonial nos EUA

>
Fonte: Economic Policy Institute, State of Working America 2006-07, Table 5.1, citing Wolff (2006), em Inequality.org.

Porque ganhou Isaltino as eleições em Oeiras?

1. Esta devia ser fácil: porque, verdadeiramente, ninguém o desafiou politicamente. E, também, porque uma eleição não é um tribunal. Felizmente.

2. Numa eleição estão em causa, e devem estar em causa, escolhas políticas. Convém, por isso, quando se quer ganhar eleições, desafiar politicamente o concorrente, sobretudo se este parte com a vantagem de obra feita.

3. A derrota dos concorrentes de Isaltino foi, em resumo, consequência da desvalorização da política.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Altos salários e fiscalidade

1. Ainda a recuperação vai no adro e já recomeçam as práticas de remuneração dos CEO que tanto debate causaram no auge da crise: prémios desligados dos resultados, montantes remuneratórios centenas de vezes superiores aos salários médios dos trabalhadores, remuneração em stock-options, … (ver, para um ponto da situação, “Salaires des patrons: la dérive continue”, por Guillaume Duval, na edição em linha da Altérnatives Économiques). E a coesão social, sobretudo em tempos de desemprego, em risco de se transformar numa miragem.

2. Em reacção a estas práticas remuneratórias, têm surgido propostas de controlo administrativo visando a imposição de tectos ao rendimento dos altos dirigentes empresariais. Como todos os controlos administrativos deste tipo, relativamente fáceis de ultrapassar e indutores do crescimento de novas funções burocráticas.

3. E, no entanto, não é preciso inventar a pólvora, apenas recordar a história recente. Nos EUA, a relação entre o rendimento médios dos presidentes dos conselhos de administração das 50 maiores empresas e o salário médio dos trabalhadores dessas empresas passou de 39 para 367 entre meados da década de 60 e início dos anos 2000. Ou seja, a desigualdade de rendimentos entre administradores e trabalhadores foi multiplicada por dez nesse período. Ao mesmo tempo, a taxa máxima de IRS passou de 70% para menos de 40%, isto é, foi reduzida a metade (ver figura). Em conclusão, a impostos mais progressivos corresponde menos desigualdade remuneratória, a impostos menos progressivos corresponde crescimento descontrolado dos salários das chefias empresariais.

4. Dissuadir as actuais práticas remuneratórias dos altos cargos de direcção empresarial exige, em resumo, incrementar de novo o âmbito e a progressividade do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, não introduzir controlos administrativos novos.




Altos salários e fiscalidade, EUA, 1936-2003
Fontes: Carola Frydman e Raven E. Saks (2005), Historical Trends in Executive Compensation 1936-2003; Urban-Brookings Tax Policy Center.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A propósito da anarquista espanhola

1. No Ladrões de Bicicletas, pedido de empréstimo, Miguel Serras Pereira reage à imputação, a Augusto Santos Silva, da comparação de Manuela Ferreira Leite com a anarquista espanhola. Tendo em conta o texto da reacção, ou Miguel Serras Pereira não leu o que disse Augusto Santos Silva ou decidiu sacralizar o anarquismo.

2. Recorde-se a frase, citando-a: “Habituei-me a ver a posição da líder do PSD mas no BE ou no MRPP, que é a posição do anarquista espanhol que diz ‘se há um Governo, sou contra’”. Interpretar esta frase como uma crítica não a Manuela Ferreira Leite mas ao anarquismo (espanhol) só fazendo por ignorar o que é uma figura de retórica, possibilidade impensável num autor e tradutor com a competência de Miguel Serras Pereira.

3. Resta, por isso, a sacralização do anarquismo e a reivindicação da sua superioridade moral e política em relação a outras ideologias como, por exemplo, o comunismo. E essa é reivindicação que não aceito. O anarquismo partilha com o comunismo a bondade de alguns ideais gerais, como o da crítica da desigualdade, socioeconómica ou hierárquica. Mas partilha também com este quer equívocos fundamentais na crítica da modernidade, quer práticas políticas de combate violento totalmente inaceitáveis. Só faltava que os simpatizantes da ideia anarquista se sentissem dispensados da crítica (e da autocrítica) radical que se exigiu e exige, e bem, ao campo do comunismo.

4. Entre os equívocos do anarquismo está a denúncia do Estado como forma absolutamente negativa de organização social. Equívoco, porque os malefícios do Estado não podem ser avaliados por comparação com uma qualquer realidade idealizada, mas com os efeitos terrenos da sua inexistência ou diminuição empiricamente observáveis. A ausência ou fragilidade do Estado, hoje, geram sempre um domínio absoluto do mais forte sobre o mais fraco, figurativa e literalmente. E esse não é mundo que se recomende. Não admira, aliás, que deste equívoco resultem, mais frequentemente do que se pensa, significativas porosidades entre os campos do pensamento anarquista e do pensamento neoliberal, particularmente nos EUA.

5. Práticas de combate político violentas associadas a algumas correntes anarquistas e presentes, por exemplo, na Guerra Civil de Espanha, não só são de todo injustificáveis, como não são alheias ao equívoco acima referido. Entre o domínio absoluto do mais forte sobre o mais fraco enquanto consequência não intencional do anti-estatismo e o fascínio por esse domínio e pelas culturas de violência que lhes estão associadas, vai um passo já dado por muitos em muitos locais. Como vai no mesmo sentido, ainda que de modo mais mitigado, o fascínio pela ética e pela corporação militar que permitiu que um mesmo autor, no caso Robert A. Heinlein, fosse por uns classificado como fascista e por outros como libertário, dependendo do posicionamento do crítico no contínuo esquerda-direita do espectro democrático.

6. Dir-se-á que estes exemplos são derivas extremas de um pensamento essencialmente decente e bondoso. O mesmo disseram, durante anos, os marxistas sobre o socialismo real. Até se perceber que entre as derivas históricas e o núcleo do pensamento originário não havia apenas perversão mas também continuidade lógica. Compreensão que faz falta no campo do anarquismo e que a sua sacralização procura evitar. Nada que não seja conhecido por quem teve outros percursos.

sábado, 24 de outubro de 2009

Sacrificium

1. O disco:

Cecilia Bartoli,
Sacrificium

com Il Giardino Armonico, dirigido por Giovanni Antonini
2 CD + hardcover com 152 pp.
Decca, Universal, 2009

Primeiro, para ouvir, depois, para ler, por fim, para pensar um pouco.

2. Esta é uma compilação de música para castrados, produzida sobretudo em Itália ao longo do século XVIII. Primeiro, porque às mulheres estava interdito o pronunciamento nas igrejas, inclusive cantando, depois, e sobretudo, por procura de vozes potentes e agudas para a ópera, a castração de jovens, antes da puberdade, teve uma procura crescente em Itália. Estima-se que, no auge dessa procura, entre 1720 e 1730, seriam castrados, anualmente, a sangue frio, cerca de 4000 jovens italianos, maioritariamente de origens sociais mais pobres. Destes, meia dúzia conseguiria um estatuto de estrela, depois de um treino intensivo de anos em escolas de canto.

3. No coração da história cultural europeia, não nas suas margens, estabeleceu-se assim uma tradição que poderia rivalizar com a da ablação do clítoris ainda hoje praticada em muitas zonas de África. Tradição que viria a ser politicamente derrotada no contexto da reunificação italiana, apesar de ter sobrevivido ainda algumas décadas mais no Vaticano.

4. O que ilustra algo que, por mais de uma vez, referi já no Canhoto. A história da modernidade não é a história longa de uma tradição específica que distinguiria a Europa de outros espaços civilizacionais, mas a história de uma vitória, na Europa, de um projecto civilizacional novo contra a tradição europeia.

5. Não faz por isso sentido o raciocínio de que não são universalizáveis os valores fundamentais desse projecto civilizacional novo por desadequação em relação às tradições vigentes noutras partes de mundo. Em todo o mundo, a vitória dos valores humanistas e universalistas que estão na base dos direitos humanos foi, é e será a vitória da razão contra a tradição. Como o foi na Europa.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Uma boa-má notícia

A continuidade de Mariano Gago à frente do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

1. Boa notícia, porque significa continuidade com as políticas que estão a permitir a reforma necessária do ensino superior.

2. Má notícia, porque significa a continuidade de uma prática política tão negativa quanto positivo tem sido, no essencial, o desenho daquelas políticas. Nomeadamente, pela deslealdade processual nas relações com as instituições que tutela e pela tomada discricionária de decisões baseadas em critérios não públicos e, por isso, impossíveis de escrutínio e de avaliação crítica.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Porque ressuscita Santana com tanta facilidade?

1. Depois da dimensão da vitória de António Costa e do PS, a novidade em Lisboa foi a facilidade com que Santana Lopes ressuscitou da morte política que lhe tinha sido vaticinada. Facilidade que precisa de ser explicada.

2. Em minha opinião, essa explicação é simples: Santana não deixou de ser primeiro-ministro sobretudo por razões politicamente relevantes. A crítica política, repito, política, do Governo de Santana foi sistematicamente subalternizada enquanto se insistia, em troca, na crítica das suas “trapalhadas” na prática da governação.

3. A insistência na crítica das “trapalhadas” teve, e tem, três consequências: em primeiro lugar, empobrece o debate político; em segundo, desloca a avaliação do exercício do poder político para os média, reforçando o poder de facto destes e a transformação da política em espectáculo mediático; e, por fim, tem efeitos intensos no curto prazo mas efémeros a médio/longo prazo.

4. A ressurreição de Santana é, em resumo, consequência da desvalorização da política.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Rankings, selecção e contexto

1. Começo por reafirmar o que já disse aqui no Canhoto: “Classificar as escolas (…) a partir das notas dos seus alunos constitui exercício intelectualmente desonesto”. Porquê? Porque há escolas que podem escolher os seus alunos e outras que não o podem fazer. Podem escolher os seus alunos as escolas privadas. Escolhem os seus alunos, mesmo que indevidamente e só parcialmente, algumas escolas públicas. Se uma escola puder escolher apenas, ou maioritariamente, bons alunos, só sendo muito má não terá mais alunos com melhores notas nos exames do que as escolas que não seleccionam à entrada.

2. As condições de partida dos alunos também contam: quando o contexto socioeconómico é mais desfavorável, a escola tem que ser muito melhor do que as escolas em contexto favorável para ter alunos com as mesmas boas classificações. E se a comparação for com escolas em bom contexto que podem ainda seleccionar os alunos à entrada, então não terá que ser melhor, mas muito melhor. Em rigor, uma escola pública com resultados um pouco piores do que as melhores privadas pode ser melhor do que estas se não seleccionar apenas bons alunos e se estiver inserida em meio socioeconómico desfavorecido.

3. Posto isto, num ponto João Miranda (aqui, ou aqui) tem razão: “A desculpa do ‘contexto sócio-económico’ é também um reconhecimento de que a escola pública não tem qualquer efeito relevante nos alunos. O que é determinante para o sucesso escolar é o ‘contexto sócio-económico’”.

4. Só faz sentido a defesa da escola pública se a esta for atribuído o objectivo de contrariar o “contexto”. Capitular perante os factores sociais do insucesso escolar é desistir da escola pública. Ter em conta o “contexto” é fundamental para (i) identificar os obstáculos à aprendizagem que devem ser superados, (ii) discriminar positivamente as escolas que precisam de mais recursos para contrariar o “contexto” e (iii) avaliar o valor acrescentado de cada escola em função das características dos seus alunos à partida (que se pressupõe serem diferentes, para melhor, à chegada) .

5. Se as listas de escolas ordenadas em função da média das notas dos seus alunos nos exames dizem pouco sobre a qualidade relativa de cada escola, os resultados absolutos dos alunos nos exames dizem muito sobre a necessidade de continuar a melhorar a escola pública. Não o reconhecer, e usar o “contexto” como desculpa, é o melhor serviço que se pode prestar a João Miranda e à sua guerra ao Estado social.

6. A escola tem que contar, e tem que contar contra o contexto.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

E a Espanha aqui tão longe

1. Em 2008, havia mais de cinco mil quilómetros de linha de alta velocidade na União Europeia (5.764 km para sermos mais precisos), distribuídos por seis países: França (1.893 km), Espanha (1.594 km), Alemanha (1.300 km), Itália (744 km), Bélgica (120 km) e Reino Unido (113 km). Na mesma data, estavam em construção mais 2.352 km de vias de alta velocidade, 45% das quais na Alemanha e 31% em Espanha. A Holanda integrou entretanto o espaço da alta velocidade com a abertura, este ano, da linha entre Amesterdão e a fronteira belga (120 km).

2. Até 2012, deverão estar concluídos os novos 734 km de via de alta velocidade em construção em Espanha, ampliando não só as ligações internas como as ligações a França e, assim, à rede europeia, quer a Norte (via País Basco) quer a Sul (via Catalunha, esta com conclusão prevista ainda para este ano). Até 2012, Portugal verá pois reforçado o seu estatuto periférico na Península Ibérica, situação que poderá ser de longa duração, se continuarmos a adiar o TGV, ou temporária, se o mesmo desemburrar de vez.

3. Em muitas dessas linhas, os comboios de alta velocidade farão várias paragens, ao contrário do mito nacional da impossibilidade de rentabilidade da alta velocidade com escalas. Como, aliás, já o fazem hoje, em especial na Alemanha: é só experimentar viajar no ICE. Em todas elas, as taxas de utilização crescerão rapidamente como cresceram no passado: em 2007, 60% dos utilizadores da ferrovia em França viajaram em comboios de alta velocidade, e 28% em Espanha e na Alemanha. Caso típico de uma oferta que cria novas procuras antes desconhecidas.

4. Há, porém, quem teime em pensar ser a alta velocidade inviável por recusar a possibilidade de o futuro poder ser radicalmente diferente do presente e, portanto, impossível de extrapolar a partir da observação das tendências actuais. Típico do pensamento conservador.


[Fonte dos dados usados: European Commission (2009), EU Energy and Transport in Figures: Statistical Pocketbook 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities, pp. 124 e 150].

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Comentários que, está-se mesmo a ver, correm o risco de serem considerados ataques à liberdade de imprensa

1. José Manuel Fernandes confessa incapacidade de auto-regulação dos média
No suplemento de sábado do Público dedicado aos rankings, José Manuel Fernandes lamenta-se uma vez mais do fim do embargo dos dados sobre os resultados dos exames decidido pelo Ministério da Educação. Razão? Segundo o próprio, “desta forma […] tem-se assistido a uma corrida para ver quem divulga primeiro os rankings, o que impede a maioria dos órgãos de informação de tratar as bases de dados com tempo e ponderação.” Isto ao sábado, claro, pois nos outros dias da semana José Manuel Fernandes proclama como princípio absoluto a auto-regulação dos média, denunciado como repugnante toda a tentativa de regulação por entidades externas (sobretudo se estatais).

2. De como fazer jornalismo dispensando a factualidade
Citação do Expresso (última página do caderno principal): “Sem direito a foto de família (os contemplados com o bilhete de saída não devem estar com grande ânimo para o sorriso da praxe), o primeiro-ministro José Sócrates reuniu ontem todos os ministros do Governo cessante para um almoço reservado em Belém, na residência oficial do chefe do Governo.” No mesmo dia (sábado), o DN publicava não uma mas duas “fotos de família”, a primeira na capa, mais informal, a segunda no interior, em pose mais institucional. Facto irrelevante, pois a ser tido em conta não permitiria que quem escreveu a caixa do Expresso fizesse passar opinião por notícia e preconceito por interpretação.

Rankings, escolhas e selectividade

1. Classificar as escolas (rankings) a partir das notas dos seus alunos constitui exercício intelectualmente desonesto.

2. Presumir que a possibilidade de escolha das escolas com base na informação daqueles rankings induz concorrência geradora de pressões para a melhoria das escolas assim colocadas em competição é ignorar a realidade. O mundo real não é o mundo plano das visões ideológicas.

3. Citando, de outro livro de Éric Maurin (La Nouvelle Question Scolaire, Seuil, 2007, p. 227): “Quanto às escolas, este tipo de concorrência induz não tanto acréscimos na qualidade de trabalho das equipas pedagógicas mas antes estratégias de recrutamento dos melhores alunos…

domingo, 18 de outubro de 2009

Despromoção social?

Éric Maurin (2009)
La Peur du Déclassement. Une Sociologie des Récessions
La République des Idées / Seuil, 96 pp.

Índice: Introduction I. L’émergence d’une société à statut II. Anatomie d’une récession: le choc de 1933 III. La valeur des diplômes en question IV. Les enjeux de la récession actuelle Conclusion


Um novo livro da République des Idées, de leitura indispensável, por várias razões.

1. Éric Maurin analisa a origem e os efeitos da descoincidência entre os riscos da despromoção social (relativamente baixos) e o medo dessa mesma despromoção (crescentemente elevado), relacionando esta descoincidência com as características e dinâmicas das sociedades estatutárias (como a França, mas também como Portugal). As principais teses do autor são resumidas nesta entrevista ao Le Monde (07.10.09), disponível em linha: “Toute réforme sera perçue comme une remise en cause d'un statut acquis”.

2. Uma nota sobre a crítica de Maurin à tese da “desvalorização dos diplomas”. Analisando, entre outros, os dados sobre o desemprego, Maurin conclui que, em França, o diferencial entre a taxa de desemprego dos diplomados do ensino superior (menor) e a taxa dos não diplomados (maior) se multiplicou por quatro entre 1975 e 2008 (ver figura). Ou seja, nunca os diplomas valeram tanto como hoje, mas nunca o medo do insucesso escolar foi tão elevado. A explicação, pelo próprio Maurin, no vídeo “Le déclassement des diplômés est-il une réalité?”


Evolução do diferencial entre a taxa de desemprego dos diplomados e a taxa de desemprego dos não diplomados (para os activos saídos da escola nos últimos cinco anos), França, 1975-2008
Fonte: INSEE, Inquérito ao Emprego, em Eric Maurin (2009), La Peur du Déclassement, p. 58.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Prioridades

1. Estou entre aqueles que pensam ser o investimento nas obras públicas importante para a criação de condições de competitividade da economia. Estou também entre os que entendem que, em tempos de crise, o investimento público é indispensável quer para atenuar os efeitos desta, quer para acelerar a retoma da economia. Finalmente, estou entre os que entendem não haver, em tempos de normalidade como, sobretudo, em tempos de crise, um único tipo de investimento benéfico, social e economicamente. Os diversos fins prosseguidos com o investimento nas obras públicas — modernização das condições infra-estruturais do país, efeito de multiplicação sobre o conjunto da economia, promoção do emprego, etc. — só podem ser alcançados com uma combinação bem pensada de diferentes tipos de programas. Entre estes, têm também lugar os agora depreciativamente chamados “megaprojectos”.

2. Sou, neste quadro, favorável não só à construção do novo aeroporto como, sobretudo, à construção das linhas de TGV, tanto entre Lisboa e Madrid como entre Lisboa e Porto. Não faz sentido investir na superação do défice de infra-estruturas ferroviárias sem aproveitar o momento para promover um salto tecnológico. Voltarei a este assunto noutro dia.

3. Porém, como os recursos não são infindáveis, não sou a favor do investimento previsto nas auto-estradas. Como se pode verificar facilmente com os dados resumidos nas figuras (ver abaixo), Portugal tem um défice enorme na ferrovia e, ao mesmo tempo, está entre os países da UE com mais quilómetros de auto-estrada tendo em conta tanto a população como a área do país. É pois na superação do défice principal, na ferrovia, que deve incidir o essencial do investimento público em infra-estruturas de transporte.

4. Até porque, estando em causa recursos públicos, é preciso também avaliar o impacto daquele investimento sobre os (elevados, em termos europeus) níveis de desigualdade socioeconómica. Tendo em conta que uma política de esquerda deve incluir entre os objectivos do investimento público o contribuir para a redução das desigualdades, não é difícil perceber que o investimento na ferrovia promove mais equidade que o investimento em auto-estradas.

5. Como, sobretudo se for superado o défice de electrificação das vias ferroviárias (hoje ainda próximo dos 50%), será um investimento mais compatível com os requisitos ambientais da sustentabilidade do desenvolvimento. E a promoção desses requisitos é também, hoje mais do que nunca, um dos objectivos centrais de políticas públicas responsáveis.



Figura 1. Quilómetros de ferrovia em uso por milhão de habitantes, UE, 2007
Fonte: European Commission (2009), EU Energy and Transport in Figures: Statistical Pocketbook 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.




Figura 2. Quilómetros de ferrovia em uso por mil quilómetros quadrados, UE, 2007
Fonte: European Commission (2009), EU Energy and Transport in Figures: Statistical Pocketbook 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.




Figura 3. Quilómetros de auto-estrada em uso por milhão de habitantes, UE, 2006
Fonte: European Commission (2009), EU Energy and Transport in Figures: Statistical Pocketbook 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.




Figura 4. Quilómetros de auto-estrada em uso por mil quilómetros quadrados, UE, 2006
Fonte: European Commission (2009), EU Energy and Transport in Figures: Statistical Pocketbook 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

IRS

1. Não há razão para excluir do IRS rendimentos individuais que não tenham origem no trabalho. Rendimento é rendimento, ponto. Uma reforma fiscal de esquerda, que deve ter entre os seus objectivos a redução das desigualdades, tem pois de acabar com a iníqua distinção fiscal entre rendimentos do trabalho, pesadamente taxados, e rendimentos de operações bolsistas, moderadissimamente taxados.

2. Em segundo lugar, a progressividade do imposto sobre os rendimentos individuais deve aumentar. Só assim se introduz mais equidade na redistribuição, pois não é justo que o custo relativo da privação de rendimento associado ao imposto comece a diminuir exactamente quando os rendimentos começam a ser muito mais elevados. Exemplificando, sobre um rendimento anual bruto de 50.000 euros não deve poder incidir a mesma taxa que incide sobre um rendimento de um milhão de euros (20 vezes maior).

3. Reduzir a desigualdade de rendimentos não é apenas uma questão sociopolítica, é também económica. Se não houver travão ao total centramento da racionalidade económica na busca da maximização do rendimento individual no curto prazo, alguns dos factores da presente crise serão repostos em funcionamento com os mesmos resultados de ontem. O problema não é (de raiz) moral: ou mudamos os incentivos económicos ou não alteramos os comportamentos que estiveram na origem da subordinação do comportamento empresarial ao espírito do capitalismo financeiro.

4. Uma reforma com estas orientações, sem travagem do crescimento económico, é viável. Recorde-se o precedente histórico: durante os Trinta Gloriosos anos do crescimento económico após a II Guerra Mundial, a taxa máxima de IRS nos EUA foi sempre superior a 70%. Nos EUA, não no mundo nórdico da social-democracia.

5. No que se refere à taxa máxima de IRS, Portugal ocupa, na União Europeia (UE), uma posição intermédia: 42%, próximo da média de 38% para o conjunto dos países da UE. Valor bem acima do das taxas irrisórias praticadas em muitos dos países do Leste, mas também claramente abaixo dos mais de 50% observáveis no mundo nórdico (ver figura).

6. Sublinhe-se, no entanto, que Portugal foi o único, repito, o único país da UE que, entre 1995 e 2008, subiu a taxa máxima de IRS. Em média, na UE, aquela taxa baixou 9,5 pontos percentuais no período em causa, enquanto em Portugal subiu 2 pontos. Não é pois preciso inventar a roda, basta continuar a percorrer o caminho iniciado durante o primeiro governo de José Sócrates.



Taxa máxima de IRS nos países da UE, 2008 (em percentagem)
Fonte: European Commission (2009), Taxation Trends in the European Union, edição de 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Impostos indirectos

1. Para além da distorção em favor dos rendimentos, no caso dos impostos directos, Portugal apresenta ainda outras peculiaridades na sua estrutura de impostos. Em especial, Portugal é um dos países da União Europeia (UE) em que é maior a parte dos impostos indirectos (tipo IVA) no total dos impostos: 42%, quando a média da União se fica pelos 38%. Como se pode verificar através dos dados da figura 1, compartilhamos, na UE, o espaço dos países do Leste.

2. Sendo a taxa nos impostos indirectos fixa, isto é, não variando em função do rendimento dos consumidores, quanto maior for a sua parte nos impostos totais mais se elimina do regime fiscal a lógica da progressividade. E, portanto, maior é a injustiça social do regime e menos este contribui para reduzir as desigualdades na distribuição do rendimento.

3. Ora, Portugal é hoje o terceiro mais desigual país da UE, apenas ultrapassado pela Bulgária e pela Roménia (ver figura 2). Em 2007, a parte do rendimento dos 20% mais ricos era, em Portugal, 6,5 vezes maior do que a parte dos 20% mais pobres. A comparar com um rácio de 5 para o conjunto da UE e de 3,4 para a Suécia.

4. Trata-se, em resumo, de peculiaridade do regime fiscal a precisar de ser corrigida com urgência, ainda que progressivamente.



Figura 1. Parte dos impostos indirectos nos impostos totais, UE, 2007
Fonte: European Commission (2009), Taxation Trends in the European Union, edição de 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.




Figura 2. Rácio entre o rendimento dos 20% mais ricos e o dos 20% mais pobres, UE, 2007
Fonte: Eurostat.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Pagamento especial por conta

1. A suspender, primeiro, e a substituir logo que possível, nas funções que cumpria, por um IRC mínimo com valor fixado em função da actividade e da dimensão da empresa.

2. A suspender, pois não é possível, em tempo de crise, presumir rendimentos equivalentes a tempos de normalidade e, deste modo, criar problemas de tesouraria às empresas. Sobretudo porque faz também parte da crise a subida da taxa de juro, nas operações bancárias de tesouraria das micro e pequenas empresas, para valores da ordem dos 20%. Não o ter compreendido a tempo já deu à direita que inventou o mecanismo a possibilidade de aparecer como a defensora da sua suspensão em tempo de eleições.

3. A substituir, depois, porque há meios mais eficazes de, simultaneamente, alargar a base fiscal, aumentando a colecta global, e reduzir a carga fiscal para cada empresa. O exemplo espanhol demonstra-o bem. A criação de um IRC mínimo com valor fixado em função da actividade e da dimensão da empresa permitiu aquele alargamento com níveis de tributação mais aceitáveis e, ainda, a concentração dos recursos da administração fiscal onde eles podem, de facto, fazer a diferença: na fiscalização pormenorizada das contas das médias e grandes empresas.

4. Até porque, numa lógica verdadeiramente de esquerda, não é o lucro mas a sua distribuição como rendimento, directo ou indirecto, que deve ser alvo de impostos crescentemente elevados. Resultados não distribuídos são indispensáveis ao investimento, devendo pois ser taxados com moderação. Sobretudo num país que tanto precisa de crescer.

5. Infelizmente, Portugal é um dos países da União Europeia (UE) em que é maior a parte dos impostos pagos pelas empresas no total dos impostos directos: 38%, a comparar com a média europeia de 28%, ou com os 21% da Suécia e os 12% de Alemanha e Dinamarca (ver figura).



Parte dos impostos pagos pelas empresas no total dos impostos directos, UE, 2007 (em percentagem)
Fonte: European Commission (2009), Taxation Trends in the European Union, edição de 2009, Luxemburgo, Office for Official Publications of the European Communities.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Razão mais do que suficiente para votar no Paulo em Almada

Porque a política em Portugal, no plano nacional como no local, precisa urgentemente do contributo da esquerda progressista, isto é, da esquerda igualitarista, liberal e cosmopolita.

28,90+11,48+0,26+0,26 = Santana

Os resultados das eleições legislativas não são directamente transponíveis para as autárquicas? Pois não. Mas também não são resultados totalmente estranhos às mesmas. Por isso, a vitória de António Costa e do PS em Lisboa será uma vitória contra a normalidade da votação na coligação de direita, só possível com base numa eficaz clarificação das alternativas em confronto, só possível se ninguém ficar em casa, se a esquerda votar útil em massa e se ao centro prevalecer o bom senso sobre a identidade tribal.

Depois não digam que foram surpreendidos.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Rendimento mínimo garantido, rendimento máximo permitido

1. Infelizmente, a direita conseguiu rebaptizar o “rendimento mínimo garantido” como “rendimento social de inserção”. Pois do que se trata é mesmo de garantir um rendimento mínimo que, para além de tudo o mais, contrarie os efeitos não só sobre os próprios mas também sobre terceiros das formas extremas de pobreza. A começar pelos efeitos sobre os mais jovens da pobreza dos pais, independentemente das razões dessa pobreza, pois a esses jovens não podem ser assacadas responsabilidades, mesmo nos casos em que elas o podem ser aos pais. Numa sociedade mais justa, a lotaria moral das heranças sociais, a começar pela lotaria da família de nascimento, não deve fixar de uma vez por todas as oportunidades de vida de cada um.

2. E, já agora, por muito que tal repugne à direita que temos, muito neoconservadora mas pouco conservadora, muito neoliberal mas pouco liberal, o inverso também é verdadeiro. O rendimento mínimo garantido deve conviver com o rendimento máximo permitido. Não há razões sociais, económicas ou morais que justifiquem o crescimento exponencial dos rendimentos individuais sem um correspondente aumento da progressividade do imposto sobre esses rendimentos. Em primeiro lugar, porque não há sucesso individual que não beneficie dos recursos sociais que viabilizam a ampliação das capacidades individuais para agir. Depois, porque o incentivo economicamente desejável ao investimento e à reprodução alargada do capitalismo é contrariado quando não há limites à busca do rendimento máximo no curto prazo. E, finalmente, porque quando a desigualdade é extrema o sentido de justiça social é moralmente abalado.

3. Portanto, senhores Rui Rio e Paulo Portas, o problema-chave em Portugal não está no rendimento social de inserção, como clamam, mas na falta de um rendimento máximo permitido. Ou seja, na necessidade de uma reforma fiscal que acentue, e muito, a actual progressividade dos impostos sobre as pessoas individuais.

A superioridade moral dos comunistas, perdão, do autarca social-democrata

Segundo Manuela Ferreira Leite, “o autarca social-democrata tem princípios, tem valores…”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Louco, um? Todos!

1. É conhecida a anedota do condutor que, viajando em contramão na auto-estrada, ouve um aviso na rádio sobre o perigoso automobilista louco que põe em risco a vida dos outros viajantes. Louco um? Todos, todos estão em contramão neste mundo enlouquecido, exclama aquele condutor.

2. Faz lembrar Santana, quando reivindica para Lisboa o exclusivo europeu da excentricidade de um aeroporto no centro da cidade. Loucos, loucos serão todos os outros, em Paris ou em Amesterdão, em Estocolmo ou em Madrid, em Londres ou em Viena. Loucos serão todos esses que se amedrontam com os problemas de segurança, que se incomodam com os níveis de ruído, que não sabem estar quietos no presente e passam o tempo a projectar o futuro. Todos em contramão, Santana na sua.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Prioridade ao transporte público

1. A vitória da coligação Unir Lisboa, nas próximas autárquicas, será também a vitória de uma política de prioridade ao transporte público sobre uma política de prioridade ao automóvel. Uma vitória de programa e não “apenas” de liderança. Se quisermos uma cidade mais agradável e sustentável, precisamos de menos carros e de mais transportes públicos. E não só de menos carros em circulação: qualquer pessoa que visite qualquer cidade do Norte da Europa pode experimentar as vantagens de circular num espaço urbano menos saturado de carros estacionados na via pública.

2. “Se quer um túnel vá de metro” é, por isso, uma frase feliz, que resume todo um programa alternativo de organização da cidade. Lisboa deve concentrar o essencial dos recursos de que dispuser no domínio da circulação para investir em infra-estruturas para o transporte público. A questão é técnica mas também social: só com mais transporte público é possível construir um espaço público mais sustentável, e só com mais transporte público é possível garantir mais equidade nos resultados do investimento dos dinheiros públicos.

3. “Se quer um túnel vá de comboio” podia ser, por analogia, a reivindicação-chave de uma nova política nacional de transportes e obras públicas. Lisboa não pode transformar-se numa aldeia gaulesa cercada por auto-estradas pejadas de carros…

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Essa mítica entidade que dá pelo nome próprio de Eleitorado

1. É sempre a mesma coisa, depois de eleições multiplicam-se os argumentos com base na invocação das decisões do eleitorado. Como, por exemplo, no apelo Compromisso à Esquerda: “ao rejeitar a maioria absoluta, o eleitorado apontou para a necessidade de entendimentos entre os partidos. Além disso, tendo em conta a maioria das esquerdas, podemos dizer também que o eleitorado aponta para que, prioritariamente, tais esforços de entendimento sejam feitos neste sentido”.

2. Neste notável exemplo estão contidas pelo menos três afirmações sobre as decisões dessa mítica entidade que dá pelo nome próprio de Eleitorado: (1) o eleitorado retirou a maioria absoluta ao PS; (2) o eleitorado quer que os partidos se entendam; (3) o eleitorado quer entendimentos à esquerda. Nenhuma das afirmações faz qualquer sentido.

3. O PS perdeu a maioria absoluta porque a soma dos eleitores que nele votaram foi menor em 2009 do que em 2005. O fim da maioria absoluta é o resultado final agregado de milhões de escolhas eleitorais individuais, não a decisão inicial de uma qualquer entidade colectiva. O resultado de escolhas de eleitores não a intenção do ”eleitorado”.

4. Da mesma forma, o facto de não haver maioria absoluta nada nos diz sobre o que pretende a maioria dos eleitores de cada partido (ou do conjunto dos partidos). A maior das fragmentações pode ser o resultado de uma balcanização sectária, como a maior das maiorias absolutas pode estar associada à preferência pela concertação; ou vice-versa. As preferências políticas dos eleitores têm que ser empiricamente conhecidas, não retoricamente simuladas com base em proclamações sobre as preferências do eleitorado.

5. Como o eleitorado não foi consultado sobre as preferências por entendimentos à esquerda, ao centro ou à direita, a última afirmação é também vazia de sentido. Dizer que há uma maioria de esquerda significa simplesmente dizer que os votos somados dos três partidos classificados como de esquerda representam mais de 50% dos votos validamente expressos nas últimas eleições. Não significa que os eleitores que fizeram as escolhas que culminaram nesse resultado prefiram maioritariamente, em termos globais ou por partido, uma convergência entre PS, BE e PCP; como não significa o contrário. Pura e simplesmente, não sabemos, sendo abusivo pretender o contrário.

6. Para concluir. É legítimo que os signatários do apelo Compromisso à Esquerda afirmem preferir um entendimento entre PS, BE e PCP. Mas é a sua preferência, não a preferência de um eleitorado que não existe enquanto entidade dotada de capacidade para ter e exprimir preferências ou para decidir sobre o que quer que seja. Ora, se queremos fundamentar as nossas preferências não nos podemos dispensar de argumentar sobre os benefícios que delas decorrem, coisa que os signatários dispensam em troca da invocação das preferências do Eleitorado.


Adenda
Ainda por cima o argumento da preferência do eleitorado sobre entendimentos à esquerda é totalmente arbitrário, mesmo que punhamos provisoriamente de parte a questão-chave acima discutida. Alguns dos subscritores do apelo referido questionaram publicamente no passado a “natureza” de esquerda do PS, preferindo classificá-lo uns ao centro, outros mesmo à direita. Ora, em função da qualificação do PS que retivermos, poderemos dizer que o eleitorado preferiu entendimentos à esquerda, ao centro ou à direita. Decidam-se, mas não é honesto ir mudando de classificação em função das variações da conjuntura política.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Falso precedente para golpe palaciano

1. Segundo Pacheco Pereira: “Não é líquido que o Presidente da República aceite todas as combinações aritméticas que o número de deputados e partidos possa permitir para fazer uma maioria. Tem nisso um precedente em Mário Soares, que, após a moção de censura que derrubou o governo minoritário de Cavaco Silva, não aceitou a solução maioritária do PS+PRD que Constâncio lhe propôs.”

2. Pois, mas a alternativa de Soares não foi convidar outra qualquer coligação a formar governo, mas dissolver a Assembleia e convocar novas eleições. Recorde-se. Num primeiro momento, na sequência das eleições de 1985, Soares convidou o lider do partido mais votado, ainda que sem maioria absoluta, o PSD, a formar governo. Mais tarde, na sequência do derrube desse governo minoritário de Cavaco, Soares, ao não aceitar a proposta de coligação PS+PRD, não aceitou a formação de um governo sem a participação do partido que tinha ganho as últimas eleições.

3. Cuidado, pois, com as comparações e os falsos precedentes.

Reformas e resultados eleitorais

Já foi por muitos assinalado que o PS ganhou as eleições apesar das campanhas dirigidas contra José Sócrates, apesar dos efeitos de uma crise mundial que começou por ser financeira mas rapidamente se transformou em económica e social, apesar dos descontentamentos corporativos gerados por reformas necessárias mas há muito adiadas. Parcialmente de acordo. As referidas reformas até poderiam ter custado a maioria absoluta numa situação de estabilidade sociopolítica. Mas no contexto de uma campanha de assassinato de carácter como nunca tinha sido visto em Portugal, e no auge de uma crise mundial como a que ainda hoje vivemos, talvez sem o crédito de confiança ganho com as reformas não tivesse sido possível vencer estas eleições.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Notas finais sobre a campanha

1. O partido rasca. O título cabe por inteiro mérito ao MMS, autor do mais abjecto cartaz eleitoral, no qual se propõe mudar Portugal introduzindo a pena da castração: para este tipo de renovação partidária já tinhamos o PRN. De onde se conclui que o facto de ser novo nada diz sobre a bondade da criatura: nos novos tanto estão as propostas respeitáveis, ainda que controversas, do MEP, como as propostas rascas, ainda que populares, do MMS e de Eduardo Correia.

2. O partido-Estado. Uma das (muitas) vantagens da invenção do mercado foi a diferenciação entre poder político e poder económico e, consequentemente, uma menor concentração de todos os poderes numa única instituição. Foi esta diferenciação, ainda, que abriu a possibilidade de constituir tanto a esfera política como a esfera económica em campos de luta institucionalizados com pesos e contra-pesos específicos. No primeiro caso, através da invenção da democracia liberal; no segundo com a criação de um regime pluralista de relações industriais que abriu caminho à institucionalização da participação de todos os parceiros sociais. Quando o BE apenas vê bondade no Estado e maldade no mercado, abre caminho à concentração progressiva do poder num único campo, com o consequente risco de totalitarismo que sempre emergiu quando esse caminho foi até ao fim percorrido. Regulação política dos mercados não é o mesmo que controlo estatal da economia, e só é possível introduzir justiça na economia quando essa confusão é evitada.

3. O partido do medo. Não há crescimento sem endividamento. Qualquer empresário, pequeno, médio ou grande, o sabe desde sempre. Agitar em abstracto o fantasma do endividamento é o mesmo que recusar a utilidade económica do sistema financeiro, em geral, e dos bancos, em particular. O problema não está no endividamento mas nas razões desse endividamento: quando o aumento do consumo é o seu principal objectivo, o endividamento é frequentemento um problema, podendo levar à ruína milhares de indivíduos; quando a aventura militar está na sua origem, o endividamento pode arruinar estados e não apenas indivíduos, como o exemplo histórico ilustra repetidamente; quando o investimento é o seu objectivo o endividamento pode ser virtuoso. Importa por isso analisar os investimentos que estão na origem do endividamento para avaliar a sua razoabilidade. E avaliá-los tendo em conta que, no fim, algum risco existirá em qualquer investimento, por mais controlado que ele pareça à partida. Quando o PSD apenas vê riscos no endividamento e ignora as vantagens económicas do investimento público, comporta-se como um partido conservador que, traindo a sua identidade reformista, dificilmente estará em condições de induzir dinâmicas de desenvolvimento num país que delas precisa com urgência. O medo nunca fez avançar o mundo.

4. O PS merece ganhar as eleições. E merece-o porque é o único partido com possibilidades de governar que dá garantias de poder contribuir politicamente para a modernização do país. Porque defendendo a regulação da vida económica e a sustentabilidade das políticas sociais não tem do mercado a imagem negativa do BE. Mas também porque sabendo não haver progresso sem riscos recusa a auto-paralisia sugerida pelo PSD e aposta forte, num momento de crise grave, na promoção pública das condições de modernização da sociedade portuguesa.